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domingo, 22 de dezembro de 2019

VICENTÃO, O SEMIDEUS







VICENTÃO, O SEMIDEUS

Vicentão, caboclo indecifrável, sentia-se velho. Cansado, agigantado. A voz grossa soava quase ininteligível, era um sussurro entrecortado por pigarros e tosse. Mas as filas continuavam, desmedidas. Ainda penaria por vários anos. Não compreendia se a missão era bênção ou castigo. E não podia parar. Enquanto acordasse, enquanto entendesse o dia e a noite, seria o estandarte de fé, a crença, o fiapo de esperança daquela gente. Sabia da sentença. Ninguém, mais que ele, conhecia a pesada realidade. A verdade pura, sem cisma.
Havia tanto tempo desde o começo de tudo... Só os velhos moradores testemunharam. Do dia para a noite, ele apareceu por aquelas bandas vindo não se sabe de onde. Era fala corrente de que descera lá das terras de Lampião, mas ninguém afirmava. Precisava ter peito para cravar isso.
Ainda era homem novo, encorpado, de pele muito escura, com pesadas roupas recendendo a suor que, em segundos, impregnavam o recinto. Fedentina avinagrada. Mãos imundas, unhas de pontas amareladas. Boca negra sempre a mascar fumo-de-rolo. Olhos esbugalhados, de um verde fogueado, que pareciam penetrar nos pensamentos daqueles que os fitavam, ainda que quase encobertos pelo largo e ensebado chapéu. Razão pela qual, ninguém do povoado o encarava. Era olhar e baixar os olhos.
Malocou-se na beira do riacho, do lado da estrada. Abrigo de pau trançado, folhas de bacuri, tudo amarrado com cipó. E tinha Jurema, amigada. Moça sacudida, de longos cabelos negros e de feitio arisco. Pouco era vista. Nunca se afastava do trecho.
Vicentão só aparecia na corrutela quando precisava de arroz, feijão ou cachaça. As misturas da comida ele tirava do rio, do mato. Estranho era que ele não trabalhava. Ninguém compreendia como conseguia viver sem ganhar. E não era por falta de serviço! Ali, no povoado, havia muito serviço nas roças. O pagamento era tacanho, mas chegava.
Desde que o estranho homem imbicara por ali, tudo foi mudando. A vida já não era a mesma. De início, todos tentavam ignorar. Nada de fazer qualquer ligação das diferenças entre antes e depois do aparecimento de Vicentão. Ninguém queria pensar nisso. A prudência mandava afastar tal pensamento. Era visível que as portas das casas já não ficavam escancaradas, os portões viviam trancados, as noites passaram a ser temidas. Coisas estranhas, que só eram percebidas de dia, aconteciam à noite.
Com o decorrer do tempo, o coveiro reparou um aumento acentuado no número de corpos que enterrava. Quase sempre mortes violentas, sem explicação convincente. Quedas de cavalo, enforcamentos, corpos encontrados em lagoas, acidentes com facão, com foices. Assim morreram muitos sitiantes, pequenos agricultores.
E Vicentão continuava vivendo à beira do riacho. Vida de bicho. Engordava a olhos vistos, estava enorme. Em poucos anos, podia-se notar que ganhara o dobro do peso. E tornou-se pai de três bruguelos. Tudo macho.
De repente, sem alarde, passou a viver num pedaço de terra que lhe foi cedido por um grande fazendeiro. Ganhou casa, móveis, horta, porcos, galinhas... Uma vida de gente. Jurema cuidava da lida, plantava, e o excedente era vendido no povoado, por Vicentão. Usava uma carroça que gemia pela estrada. Dava dó do pobre animal a puxar todo aquele peso.
Além de vender sua mercadoria, passou a fazer orações em voz alta. Passava pelas ruelas a dizer boas novas, invocando as graças de Deus e dos santos da arcada celestial. E aquilo foi virando costume. Os menos afortunados, os mais desavisados, aqueles que se sentiam fragilizados e esquecidos pela salvação, encontraram sintonia nas palavras ditas por aquele vozeirão. Aproximavam-se e rogavam por uma reza, uma orientação, uma benzida. E, como tudo que afaga a esperança dá um sopro de vida, os moradores, enlevados, afirmavam que o filho havia reagido à doença, que a tosse havia cessado, que o ânimo havia arribado. Enfim, as rezas foram se avolumando. O povoado todo aguardava ansiosamente a chegada do Vicentão verdureiro.
As mortes diminuíram assustadoramente. Não pelas bênçãos recebidas do estranho homem. Antes disso. Mas ninguém tocava no assunto. As cismas não foram esquecidas, foram guardadas. Quem ousaria dizer numa prosa que desconfiavam que houvesse, por ali, um matador de aluguel?! Estava bom daquela maneira, não importavam as circunstâncias. Ao coveiro sobrava mais tempo de cuidar de outros afazeres. Modorrento, até cochilava nas tardes mornas.
Ao mesmo tempo em que ocorria a ascensão da fama de benzedor, Vicentão ia ganhando peso. Ganhara um corpo tão assustador, tão desproporcional que já não conseguia andar. Os joelhos não suportavam o peso, os pés inchados, esparramados, não coordenavam a caminhada. E, assim, também o serviço de vender a produção ficou a cargo de Jurema e dos meninos.
Vicentão já não arredava pé do sítio. Aliás, quase não arredava pé da imensa cadeira. E a casa passou a ser destino de procissões de fiéis. Filas diárias. Bastava raiar o dia, os crédulos iam chegando. Traziam doentes, crianças, pertences. Comum era o benzedor fazer uma oração tendo em mãos uma camisa, uma calça, uma veste do doente. Na ausência, o pedido de cura era endereçado ao dono daquela peça. O segredo era, depois, vestir o enfermo com aquela roupa, sem que fosse lavada.
A figura do benzedor, envolto em roupas brancas, com o peito coberto por profusos colares, quase estático na penumbra daquela sala toda enfeitada com flores de crepom, de imagens e quadros de santos, de velas acesas, era o retrato de uma entidade. Impossível mensurar a importância daquele homem na vida dos peregrinos. Era sagrado. Divindade. Nunca era questionado. Os incautos o veneravam.  Os incrédulos ficavam calados, simples assim. Era um respeito velado.
Muitas vezes, era visto como o próprio Deus a distribuir curas e milagres. Não era o intercessor, era o Rei. E as súplicas eram segredadas, os louvores eram cantados, a esperança, que transcendia a razão na presença Dele, era aspirada.
O povoado criou fama. Passou a ser lembrado na região toda, até mesmo nas cidades grandes. As caravanas chegavam aos montes. A peregrinação trouxe vantagem aos moradores. A vida melhorou muito. O povoado estava vistoso, cheio de vigor. Havia serviço de rádio, fábrica de vela, os moradores estavam até confabulando sobre abrir uma gráfica. Os santinhos encomendados nas cidades grandes saíam a preço muito alto, o lucro era pouco.
E chegou o serviço dos Correios. Dos bancos. E começou o asfalto. Brotaram novos empreendimentos, pousadas, bares, restaurantes. O povoado virou uma cidade. O progresso, conduzido por aquele forasteiro misterioso, foi galopante e atravessou décadas.
Vicentão, caboclo indecifrável, sentia-se velho. Cansado, agigantado. A voz grossa soava quase ininteligível, era um sussurro entrecortado por pigarros e tosse. Mas as filas continuavam, desmedidas. Ainda penaria por vários anos. Não compreendia se a missão era bênção ou castigo. E não podia parar. Enquanto acordasse, enquanto entendesse o dia e a noite, seria o estandarte de fé, a crença, o fiapo de esperança daquela gente. Sabia da sentença. Ninguém, mais que ele, conhecia a pesada realidade. A verdade pura, sem cisma.
E como penou. A jornada tornara-se arrastada e, caprichosamente, sugava dele cada fagulha de ânimo que brotava nem sabia de onde. Verdadeiro calvário.
E num começar de dia, igual a tantos que passara por ali, com os olhos cansados mirando a interminável fila de inocentes, Vicentão dobrou-se diante da vida. Uma vertigem, uma tremura esquisita, queimação insuportável no peito. A sororoca foi curta. Sem tumulto, sem sobressalto, partiu. A notícia saiu porta afora e todos se puseram de joelhos. Sem alarido, serenos.
Jurema, a eterna amigada, sabia dos desejos do benzedor. A cama de casal fora levada para os fundos da casa, colocada na sombra da figueira. Ali ele seria velado e ali seria enterrado. De início, todos ficaram apavorados com o carregamento do corpo até lá. Como levar aquele despropósito de cadáver até o terreiro, e como enterrá-lo?!
Todos os homens se apresentaram e ficaram planejando a remoção. Quem seguraria os braços, as pernas, os pés, a cabeça. O corpo! Era uma multidão girando em torno do defunto tentando achar o jeito mais acurado para o carregamento. E o susto foi geral. Na primeira tentativa perceberam que o corpo era leve feito paina. Não exigia força alguma para levantá-lo. Ficaram calados durante todo o trajeto até à figueira. Arranjado o corpo sobre a cama, todos rezaram em silêncio. Até na hora da morte, Vicentão tirava cartas da manga. Era criador de cismas. Soube, como ninguém, brincar com a vida. Ou com a morte. Ou com a fé.
Sepultado ali mesmo, sem qualquer encravo, fez do túmulo o seu santuário. Santuário do corpo. A alma? Sabe-se lá por onde anda... Os moradores antigos até têm cismas, mas ninguém tem peito para cravar.

Regina Ruth Rincon Caires


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