O
MENDIGO DO VIADUTO DO CHÁ
A moeda corrente era o cruzeiro. A
passagem de ônibus custava sessenta centavos. O ano era 1974.
Eu trabalhava no centro da cidade,
em um banco que ficava na Rua Boa Vista. Morava longe, quase ao final da
Avenida Interlagos, e usava diariamente o transporte coletivo. Meu trabalho, no
departamento de estatística, resumia-se a somar os números datilografados em
planilhas e mais planilhas fornecidas pelas agências do banco. Somas que
deveriam ser checadas, e que eram efetuadas nas antigas calculadoras elétricas com
suas infernais bobinas, conferidas e grampeadas nas respectivas planilhas. Não
fosse o café para espantar o sono durante as diárias e rotineiras oito horas de
trabalho, nenhuma soma teria sido confirmada.
Era uma época menos violenta. Havia
assaltos, furtos, mas com uma incidência infinitamente menor que a de hoje. Não
existiam caixas eletrônicos, nem cartões de crédito ou de débito. Os mais
abastados faziam uso de talões de cheques, e os remediados, feito eu, carregavam
dinheiro vivo. Minguado, mas estava ali.
O meu dinheiro ficava em casa. Na
bolsa eu carregava apenas os trocados das passagens de ida e volta. Numa
repartição da bolsa, fechada com zíper, eu sempre colocava uma reserva de dois
cruzeiros, a título de precaução para alguma pequena emergência. A comida eu
levava de casa, não havia despesas maiores no dia a dia. Todas as compras da
semana eram feitas na feira de Santo Amaro, aos domingos.
A metrópole sempre está em
construção, mas naqueles dias o centro era uma escavação só. Com a construção
do metrô, as enormes retroescavadeiras, os gigantescos guindastes, as malditas
britadeiras com seus trêmulos operadores, tudo somado remetia a um ruído
enlouquecedor, trazia um desassossego sem medida. Caminhar por ali era angustiante.
Certa manhã, cruzando o Viaduto do
Chá, deparei com um vendedor ambulante que oferecia selos e envelopes de carta.
Como o meu estoque havia acabado, fiz a compra usando a pequena reserva de
emergência que carregava na bolsa. Sim, tínhamos o costume de escrever aos
amigos e parentes distantes e os serviços dos Correios eram a forma mais
barata, segura e eficiente de comunicação.
Na escada que ladeia o Viaduto,
trajeto que eu fazia diariamente na ida para o trabalho e na volta para casa,
encontrava sempre um homem cego, com uma perna amputada, a mendigar. Estava
sempre acomodado no degrau mais alto da escada, rente ao muro que sustentava o corrimão.
O movimento dos pedestres era intenso na escadaria, e, muitas vezes fiquei em
pé, atrás do mendigo, aguardando um espaço para passar. Movimento que piorava
na hora do rush.
Interessante como o mendigo se
integrava à paisagem. Aquele homem fazia parte daquele lugar. Não consigo me
lembrar da escada sem a presença dele, lá, no alto. Reparava que sempre
colocava as muletas perfiladas junto ao muro, de maneira a não atrapalhar os
transeuntes. Eu não sabia como ele chegava até ali, não sabia onde morava, não sabia
como se alimentava... Eu o cumprimentava na ida e na volta, nunca deixei de
dizer bom dia e boa noite. Isso mesmo, boa noite! Quando passava por ali, na volta
do trabalho, mesmo com a noite chegando, o homem continuava lá, no mesmo lugar.
Numa sexta-feira, subindo a
escadaria, pensei que, apesar de ficar tocada pela fragilidade do mendigo, pela
sua situação miserável, nunca havia doado uma moeda para o pobre homem. Enfiei
a mão na bolsa, peguei as moedas que estavam lá e as coloquei na lata que ele
segurava nas mãos. Ao ouvir o barulho do níquel, ele agradeceu. Respondi ao
agradecimento e segui o meu caminho.
Terminado o dia, era chegada a santa
hora de voltar para casa. Na escada do Viaduto, no mesmo lugar, o mendigo. O
movimento de pessoas era aterrador. Passei por ele, dei boa noite, e desci espremida
na multidão.
Já na fila do ônibus, abri a bolsa,
abri o zíper do compartimento da reserva... Não havia reserva. Depois que
comprei os envelopes e os selos não fiz a reposição. Puro esquecimento... Meu
Deus, como eu voltaria para casa?!
Passei os olhos pela fila, pessoas
estranhas, como sempre. Atrás de mim já estavam perfilados inúmeros
passageiros. E eu ali... Sem expediente, sem saber o que fazer. Se fosse
qualquer outra pessoa, poderia até pedir para que alguém pagasse a passagem,
contaria a história. Mas não eu. Nunca!
Saindo da fila e vendo a noite
chegar cada vez mais rápido, fui entrando em pânico. Não demoraria muito e
naquela parte da cidade não haveria mais pessoas nas ruas! E eu, o que faria?!
Desesperada, não vislumbrando outra
saída, pensei no mendigo. Eu havia dado a esmola naquela manhã, eu poderia
pedir o dinheiro de volta. Não! De volta, não! Eu poderia pedir a ele o valor
da passagem como empréstimo, e o pagaria no dia seguinte. No dia seguinte, não!
Na segunda-feira... Fui pensando nisso e andando na direção da escada. Será que
ele ainda estaria lá?!
Apressei o passo e aos trotes fiz o
caminho de volta. Quando olhei para o alto e o vi lá em cima, no mesmo lugar,
fiquei feliz, aliviada. Quero dizer, um pouco aliviada porque o pior ainda
estava por acontecer. Eu teria que negociar com ele um pequeno empréstimo. Que
situação! Eu nem sabia como iniciar a conversa.
Quando cheguei ao topo da escada, eu
estava ofegante, suando em bicas. O suor descia pelas costas e empapava o cós
da saia... Sentei-me no degrau abaixo do dele, e fiquei recostada no corrimão
por alguns instantes. Não sabia o que falar e ele não podia me ver! Relutei,
ensaiei, preparei e num arroubo disse:
-
Senhor!
O pobre homem levou um susto
tamanho, estremeceu e jogou os braços à frente, como que para se defender. E aí
fiquei ainda mais desconcertada, se é que poderia.
-
O que aconteceu?! – disse ele, muito assustado e querendo
uma explicação para aquele grito.
-
Senhor, por favor, eu não queria que o senhor se assustasse. Sou assim mesmo,
toda atrapalhada, sem jeito... – eu disse.
O homem, sem compreender nada,
ainda se refazendo do susto, deu uma ajeitada no corpo, e virou o rosto para o
meu lado, guiado pela minha voz.
E eu continuei:
-
Senhor, preciso da sua ajuda, mas nem sei como começar a falar...
O mendigo, com muita serenidade,
disse:
-
Dona, fala com calma. O que está acontecendo com a senhora? Pode ter certeza de
que vou ajudá-la.
Então, comecei a contar que
trabalhava ali no centro, que passava por ali todos os dias, e que naquele dia
havia dado uma ajuda a ele, contando com a reserva de dinheiro que na realidade
não havia... O homem ouviu atentamente, e me disse:
-
Eu conheço a sua voz. É a mesma voz que me cumprimenta todos os dias. Eu tenho
esse registro.
Encabulada, num constrangimento sem
tamanho, confirmei:
-
Sim, eu sempre cumprimento o senhor... Mas agora preciso de ajuda para ir para
casa. O dinheiro que lhe ofereci hoje era exatamente o valor da minha passagem.
O senhor poderia me fazer um empréstimo e eu devolveria o dinheiro na
segunda-feira?! Prometo que pago, sem falta!
O pobre homem riu, solicitamente
estendeu a latinha com algumas moedas e disse:
-
Dona, pega aqui o que a senhora precisa e não vamos falar em pagamento, está
bem?
Fiquei vermelha quando vi a lata
bem perto dos meus olhos. Olhei as pessoas que passavam por ali... Meu Deus, o
que estariam pensando?! Como reagiriam quando eu metesse a mão na latinha para
pegar as moedas? Será que pensariam que eu estava roubando o mendigo?!
O homem, que mantinha o braço
erguido balançando a lata, disse:
-
Vamos, pega as moedas!
Aflita, envergonhada, mas sem outra
saída, enfiei a mão na lata e peguei sessenta centavos. Com a outra mão, toquei
a mão dele e a abaixei. Assim ele entenderia que eu havia retirado as moedas.
O mendigo deu um tapinha carinhoso
na minha mão, e docemente tentou me acalmar, dizendo:
-
Vai, dona! Segue o seu caminho, está tudo certo.
-
Obrigada, meu senhor! Na segunda-feira, sem falta, eu acertarei esse
empréstimo. Pode acreditar! – falei.
Desci a escada numa ansiedade
danada. Só pensava em entrar no ônibus, em desaparecer da frente daquelas
pessoas, em voltar para casa... O movimento dos passageiros já era muito menor,
e com isso havia assentos livres. Exausta, joguei o corpo sobre um deles.
Ajeitei a bolsa no colo, e, inevitavelmente, caí no choro. Chorava pela aflição
do momento, chorava pela generosidade do mendigo, chorava pela solitude na
multidão, chorava... Só queria chorar.
Na segunda-feira, saí mais cedo de
casa, saldei minha dívida depois de uma longa conversa e de muita insistência, e
descobri que ganhei mais um amigo. Ah! O nome dele é Pedro...
Regina
Ruth Rincon Caires
Araçatuba/SP
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