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domingo, 22 de dezembro de 2019

DE HERÓI A VILÃO




DE HERÓI A VILÃO

            Chuvas de novembro.
         A natureza é reanimada. Gotas abundantes e contínuas avolumam-se, formam uma grande tempestade. As pessoas têm até dificuldade para locomoverem-se a fim de realizar seus compromissos mais banais.
         E com isso, o movimento da agência bancária é mínimo. Raramente aparece um ou outro cliente, molhado, encharcado, e nervoso ainda por cima! Sobra tempo até para tomar tenência de prosas corriqueiras entre aqueles que estão por perto, esperando uma trégua da chuva.
         A tarde fica maçante, o ar morno, o corpo sonolento...
         O zunido do rádio, provocado pela interferência dos raios, dos relâmpagos na transmissão, chega a irritar.
         Melhor mesmo é desligá-lo.
         Aliás, ia fazer isso de qualquer maneira. Interessei-me pela conversa iniciada entre o vigilante e um desconhecido.
- Engraçado! O Natal está chegando e nem parece! – diz o desconhecido.
- É, o negócio tá feio! Essa falta de dinheiro acaba com qualquer festa... – responde o vigilante.
- Não, seu guarda! Não é a falta de dinheiro, não! A graça está acabando porque tudo virou costume. Tudo aquilo que só era feito nas festas, agora acontece em qualquer dia... Pensa bem.  Antigamente a gente esperava o Natal como uma criança espera por um presente. No Natal a gente tomava guaraná, comia leitoa, frango assado, panetone, tinha sempre uma garrafa de vinho para ser dividida com toda a família. Hoje não! Por mais difícil que pareça a situação, as crianças sempre têm refrigerante! Não importa de que jeito se consegue comprar, não importa... O que era um acontecimento virou costume, e nada novo foi criado... – fala o desconhecido.
O vigilante ouve atentamente, com ar compenetrado. Cada palavra dita parece explicar-lhe um mundo de coisas, muda conceito. De repente, a situação econômica não é tão penosa assim! Na verdade as pessoas trocaram os valores das coisas. Interessante! O vigilante parece aliviado...
Quando percebe que o desconhecido deu uma pausa na conversa, e estimulado a continuar o assunto, chega-se mais para perto dele. Afinal, aquele homem é um sábio! Pensa profundamente, analisa. E aí está a sabedoria. Está no fato de esmiuçar os acontecimentos corriqueiros, no tentar compreender o simplismo da vida.
- O senhor tem toda a razão!  O costume é que mudou muito. Os dias ficaram iguais. É isso mesmo! Eu lembro bem de que tempos atrás, pela mesa se conhecia o domingo. Era frango e macarronada. As galinhas até se arrepiavam quando ia chegando o final de semana!
- É, seu guarda! É isso mesmo! E mais... Na verdade a vida ficou mais atropelada, mais apertada, mais compromissada, não vou negar. Mas, o que mais tirou o encanto das coisas não foi a escassez do dinheiro. O que deixa a pessoa amolada é a desesperança. Essa não tem jeito de mudar. E vou falar uma coisa pro senhor: ainda que hoje nós, pobres, de repente ficássemos cheios de dinheiro, essa amargura do desconforto, essa desilusão entranhada já deixaram marcas profundas, e nada poderia ser mudado. A nossa cabeça, o nosso juízo não é feito de papel onde, com uma borracha apenas, tudo se apaga. Seríamos ricos desiludidos, pode ter certeza! A ilusão se foi, companheiro. É isso... Mas, deixa pra lá... A chuva está mais branda, já dá pra circular. Até logo, seu guarda, e tenha um feliz Natal!
O vigilante permanece imóvel, indignado.
Perplexo, continua com os olhos fixos no desconhecido que se afasta rumo ao portão.          Tenho a impressão de que está querendo não acreditar no que ouviu. Sente necessidade de não acreditar!
Sujeitinho petulante! Parece o dono da verdade! Com que direito chega aqui e coloca a realidade nua e crua diante dos olhos alheios, dando um nó nos pensamentos e deixando na garganta esse sabor amargo de aflição?!
Atônito, o vigilante ainda olha o portão onde a figura do desconhecido desaparece. Leva tempo para recompor-se. Ergue o boné, coça a cabeça como que para espantar os pensamentos. Vira a cabeça para o meu lado, e fica ainda mais encabulado quando percebe que assisti a tudo.
Tento disfarçar o olhar, mas... Tarde demais. O olhar é feito palavra, não tem volta.
Tenho vontade de puxar prosa, tentar animá-lo um pouco. Mas, para quê? De que adiantaria isso agora? Que remédio?!
Amanhã é outro dia, e ele estará refeito.
É preciso relevar, e tocar adiante.

                                                     Regina Ruth Rincon Caires    

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