DE HERÓI A VILÃO
Chuvas de novembro.
A
natureza é reanimada. Gotas abundantes e contínuas avolumam-se, formam uma grande
tempestade. As pessoas têm até dificuldade para locomoverem-se a fim de
realizar seus compromissos mais banais.
E
com isso, o movimento da agência bancária é mínimo. Raramente aparece um ou
outro cliente, molhado, encharcado, e nervoso ainda por cima! Sobra tempo até
para tomar tenência de prosas corriqueiras entre aqueles que estão por perto,
esperando uma trégua da chuva.
A
tarde fica maçante, o ar morno, o corpo sonolento...
O
zunido do rádio, provocado pela interferência dos raios, dos relâmpagos na
transmissão, chega a irritar.
Melhor
mesmo é desligá-lo.
Aliás,
ia fazer isso de qualquer maneira. Interessei-me pela conversa iniciada entre o
vigilante e um desconhecido.
- Engraçado! O Natal está
chegando e nem parece! – diz o desconhecido.
- É, o negócio tá feio!
Essa falta de dinheiro acaba com qualquer festa... – responde o vigilante.
- Não, seu guarda! Não é
a falta de dinheiro, não! A graça está acabando porque tudo virou costume. Tudo
aquilo que só era feito nas festas, agora acontece em qualquer dia... Pensa bem.
Antigamente a gente esperava o Natal
como uma criança espera por um presente. No Natal a gente tomava guaraná, comia
leitoa, frango assado, panetone, tinha sempre uma garrafa de vinho para ser
dividida com toda a família. Hoje não! Por mais difícil que pareça a situação,
as crianças sempre têm refrigerante! Não importa de que jeito se consegue
comprar, não importa... O que era um acontecimento virou costume, e nada novo
foi criado... – fala o desconhecido.
O vigilante ouve
atentamente, com ar compenetrado. Cada palavra dita parece explicar-lhe um
mundo de coisas, muda conceito. De repente, a situação econômica não é tão
penosa assim! Na verdade as pessoas trocaram os valores das coisas.
Interessante! O vigilante parece aliviado...
Quando percebe que o
desconhecido deu uma pausa na conversa, e estimulado a continuar o assunto, chega-se
mais para perto dele. Afinal, aquele homem é um sábio! Pensa profundamente,
analisa. E aí está a sabedoria. Está no fato de esmiuçar os acontecimentos
corriqueiros, no tentar compreender o simplismo da vida.
- O senhor tem toda a
razão! O costume é que mudou muito. Os
dias ficaram iguais. É isso mesmo! Eu lembro bem de que tempos atrás, pela mesa
se conhecia o domingo. Era frango e macarronada. As galinhas até se arrepiavam
quando ia chegando o final de semana!
- É, seu guarda! É isso mesmo!
E mais... Na verdade a vida ficou mais atropelada, mais apertada, mais
compromissada, não vou negar. Mas, o que mais tirou o encanto das coisas não
foi a escassez do dinheiro. O que deixa a pessoa amolada é a desesperança. Essa
não tem jeito de mudar. E vou falar uma coisa pro senhor: ainda que hoje nós,
pobres, de repente ficássemos cheios de dinheiro, essa amargura do desconforto,
essa desilusão entranhada já deixaram marcas profundas, e nada poderia ser
mudado. A nossa cabeça, o nosso juízo não é feito de papel onde, com uma
borracha apenas, tudo se apaga. Seríamos ricos desiludidos, pode ter certeza! A
ilusão se foi, companheiro. É isso... Mas, deixa pra lá... A chuva está mais
branda, já dá pra circular. Até logo, seu guarda, e tenha um feliz Natal!
O vigilante permanece
imóvel, indignado.
Perplexo, continua com os
olhos fixos no desconhecido que se afasta rumo ao portão. Tenho a impressão de que está querendo
não acreditar no que ouviu. Sente necessidade de não acreditar!
Sujeitinho petulante!
Parece o dono da verdade! Com que direito chega aqui e coloca a realidade nua e
crua diante dos olhos alheios, dando um nó nos pensamentos e deixando na
garganta esse sabor amargo de aflição?!
Atônito, o vigilante ainda
olha o portão onde a figura do desconhecido desaparece. Leva tempo para recompor-se.
Ergue o boné, coça a cabeça como que para espantar os pensamentos. Vira a
cabeça para o meu lado, e fica ainda mais encabulado quando percebe que assisti
a tudo.
Tento disfarçar o olhar,
mas... Tarde demais. O olhar é feito palavra, não tem volta.
Tenho vontade de puxar
prosa, tentar animá-lo um pouco. Mas, para quê? De que adiantaria isso agora?
Que remédio?!
Amanhã é outro dia, e ele
estará refeito.
É preciso relevar, e
tocar adiante.
Regina
Ruth Rincon Caires
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