DA
DOAÇÃO À AFLIÇÃO
Em
meados da década de 1970, trabalhávamos juntas. Éramos muito parecidas
fisicamente. Franzinas, magérrimas, elétricas feito serelepes, com grande
deficiência visual minimizada por grossas lentes adaptadas nos óculos enormes,
pesados. A dissemelhança ficava evidente nos traços orientais de Yoshiko.
Trazia as palmas das mãos sempre amarelas, de um amarelo-abóbora, estranho.
Muito tempo depois, fiquei sabendo que era por ingestão excessiva de cenoura.
Naqueles
tempos, a possibilidade de doação de sangue ou de órgãos era quase
desconhecida. Pouco se falava, não havia qualquer divulgação. De repente, alguns voluntários mais alguns
funcionários da saúde, e mais a diretoria da Santa Casa de Misericórdia,
iniciaram uma campanha na cidade visando arrebanhar doadores de córneas.
Imaginando que, por sempre ter enxergado muito pouco, nunca poderia doar os
olhos, não procurei me inteirar do assunto. Não sabia da independência da
córnea, no contexto.
Numa
manhã, antes do início do atendimento ao público, a gerente permitiu uma
reunião na qual alguns servidores da saúde explicaram a razão da campanha e
solicitaram que fizéssemos os nossos cadastros de doadores. Tudo muito embrionário,
com formulários a serem preenchidos, elementarmente confeccionados em mimeógrafos,
letras roxas, borradas. No rodapé da página havia um espaço a ser preenchido
com o nome de cada um, e com a inscrição “DOADOR DE CÓRNEAS”. Fora dada a
orientação para que essa parte fosse recortada e colocada na carteira de uso
diário. Em caso de ocorrência de morte, as pessoas saberiam que éramos
doadores. Incipiência do movimento. As propostas/cadastros foram distribuídas
para que fossem preenchidas em outro horário, com a promessa de que na manhã
seguinte elas seriam recolhidas pela gerente e repassadas à equipe responsável
pela coleta. Preenchi o meu formulário naquela noite. Recortei a tirinha do
rodapé que trazia o meu nome e a guardei na carteira. Na manhã seguinte todos
os cadastros foram repassados à gerente. Acho que todos entregaram. Não ouvi
qualquer comentário que contrariasse essa intenção. Afinal, éramos todos muito
jovens, a morte era uma realidade arredada... Depois disso, confesso que pensei
que fosse um ciclo concluído. Pensei... Nos dias seguintes, o trabalho normal,
a correria de sempre...
Percebi
Yoshiko mais calada. Semblante abatido, aparentava estar mais magra, se é que
poderia... Já não estava tão ágil nos movimentos, e muitas vezes mostrava
sentir tonturas. Trabalhando no guichê ao lado, eu não poderia deixar de notar
as mudanças. No horário do lanche procurei falar com ela. Nem precisei alongar
o assunto, logo ela caiu no choro. Estava fragilizada, amedrontada. E de pronto
me falou que tudo começara no dia em que ela entregou o cadastro de doadora de
córneas. Desde então, não conseguia dormir, perdera totalmente o apetite,
sentia pavor da morte. E que a morte se tornara um pensamento recorrente. Perguntei
a ela o que queria fazer. Ela não titubeou. Queria retirar o cadastro de doação.
Não queria ser doadora de córneas. Arrependera-se.
Diante
da aflição de Yoshiko, prometi a ela que cuidaria disso. De imediato, liguei para o serviço de saúde e
perguntei onde estavam arquivados os formulários já preenchidos dos doadores de
córneas. Recebi a informação de que todos os que foram recolhidos nos diversos
locais da cidade, estavam acondicionados em caixas empilhadas em uma sala do
posto de saúde, e que tudo seria organizado manualmente e arquivado em ordem
alfabética tão logo terminasse a campanha. Ela, rapidamente me entregou a
tirinha recortada do formulário que havia preenchido para que eu pudesse apresentá-la
no serviço de saúde. E foram dias, semanas de espera. Yoshiko, apesar de um
pouco mais aliviada porque dividira a preocupação comigo, continuava abatida.
Liguei inúmeras vezes para saber se o serviço de arquivamento havia terminado,
e nada... Completada a terceira semana, fui pessoalmente ao serviço de saúde. A
sala onde estavam as caixas era um caos deflagrado... Pilhas e pilhas de folhas
esperando a organização alfabética, os arquivos ainda vazios. No trabalho havia
apenas uma voluntária. Desarvorada, perdida... Ofereci ajuda para o final de
semana, e ela agradeceu com um largo sorriso.
Combinei
com Yoshiko, e no sábado de manhãzinha mergulhamos no trabalho do arquivo,
juntamente com outras voluntárias. Se o material ainda estivesse em caixas, a
busca seria mais fácil, poderíamos achar os formulários da nossa empresa. Mas
tudo havia sido misturado. Eu me preocupava mais em colocar em ordem
alfabética, mas Yoshiko repassava as folhas numa pesquisa voraz. Fazia pena... E
assim foi o sábado. No domingo, começamos ainda mais cedo. Yoshiko, um pouco
mais desgastada pelo insucesso da procura do dia anterior, tinha um olhar meio
dispersivo, incrédulo. Falávamos pouco durante a organização. Eu até rezava. Achar
aquele papel era o propósito que traria a paz de Yoshiko. Podia parecer
bobagem, mas não era. Para Yoshiko era vital. Começava a escurecer, final de
outono, e aproximava a hora de encerrar o trabalho. Fomos guardar no arquivo o
último lote separado no dia, e Yoshiko pegou o final da pilha, as letras finais
do alfabeto. Passados alguns minutos, ela soltou um grito: “ACHEI!!!”.
Nem
acreditei! Estava ali, nos formulários já arquivados, a folha com o nome dela.
Ela ria, chorava, pulava... Feliz, feliz como uma criança que ganhou o presente
sonhado. Que alívio! Hoje somos idosas. A vida nos levou por destinos
diferentes, mas continuamos aqui, vivas, firmes. Será que ela mudou de ideia?!
Nem ouso perguntar... A doação, igual a toda e qualquer decisão, deve ser fruto
de uma análise profunda, de um amadurecimento de ideia, de meditação, de
aceitação, de discussão. Há tempo para tudo. Da vida nasce vida, da morte
doamos vida...
Regina
Ruth Rincon Caires
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