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domingo, 22 de dezembro de 2019

DA DOAÇÃO À AFLIÇÃO




DA DOAÇÃO À AFLIÇÃO

Em meados da década de 1970, trabalhávamos juntas. Éramos muito parecidas fisicamente. Franzinas, magérrimas, elétricas feito serelepes, com grande deficiência visual minimizada por grossas lentes adaptadas nos óculos enormes, pesados. A dissemelhança ficava evidente nos traços orientais de Yoshiko. Trazia as palmas das mãos sempre amarelas, de um amarelo-abóbora, estranho. Muito tempo depois, fiquei sabendo que era por ingestão excessiva de cenoura.
Naqueles tempos, a possibilidade de doação de sangue ou de órgãos era quase desconhecida. Pouco se falava, não havia qualquer divulgação.  De repente, alguns voluntários mais alguns funcionários da saúde, e mais a diretoria da Santa Casa de Misericórdia, iniciaram uma campanha na cidade visando arrebanhar doadores de córneas. Imaginando que, por sempre ter enxergado muito pouco, nunca poderia doar os olhos, não procurei me inteirar do assunto. Não sabia da independência da córnea, no contexto.
Numa manhã, antes do início do atendimento ao público, a gerente permitiu uma reunião na qual alguns servidores da saúde explicaram a razão da campanha e solicitaram que fizéssemos os nossos cadastros de doadores. Tudo muito embrionário, com formulários a serem preenchidos, elementarmente confeccionados em mimeógrafos, letras roxas, borradas. No rodapé da página havia um espaço a ser preenchido com o nome de cada um, e com a inscrição “DOADOR DE CÓRNEAS”. Fora dada a orientação para que essa parte fosse recortada e colocada na carteira de uso diário. Em caso de ocorrência de morte, as pessoas saberiam que éramos doadores. Incipiência do movimento. As propostas/cadastros foram distribuídas para que fossem preenchidas em outro horário, com a promessa de que na manhã seguinte elas seriam recolhidas pela gerente e repassadas à equipe responsável pela coleta. Preenchi o meu formulário naquela noite. Recortei a tirinha do rodapé que trazia o meu nome e a guardei na carteira. Na manhã seguinte todos os cadastros foram repassados à gerente. Acho que todos entregaram. Não ouvi qualquer comentário que contrariasse essa intenção. Afinal, éramos todos muito jovens, a morte era uma realidade arredada... Depois disso, confesso que pensei que fosse um ciclo concluído. Pensei... Nos dias seguintes, o trabalho normal, a correria de sempre...
Percebi Yoshiko mais calada. Semblante abatido, aparentava estar mais magra, se é que poderia... Já não estava tão ágil nos movimentos, e muitas vezes mostrava sentir tonturas. Trabalhando no guichê ao lado, eu não poderia deixar de notar as mudanças. No horário do lanche procurei falar com ela. Nem precisei alongar o assunto, logo ela caiu no choro. Estava fragilizada, amedrontada. E de pronto me falou que tudo começara no dia em que ela entregou o cadastro de doadora de córneas. Desde então, não conseguia dormir, perdera totalmente o apetite, sentia pavor da morte. E que a morte se tornara um pensamento recorrente. Perguntei a ela o que queria fazer. Ela não titubeou. Queria retirar o cadastro de doação. Não queria ser doadora de córneas. Arrependera-se.
Diante da aflição de Yoshiko, prometi a ela que cuidaria disso.  De imediato, liguei para o serviço de saúde e perguntei onde estavam arquivados os formulários já preenchidos dos doadores de córneas. Recebi a informação de que todos os que foram recolhidos nos diversos locais da cidade, estavam acondicionados em caixas empilhadas em uma sala do posto de saúde, e que tudo seria organizado manualmente e arquivado em ordem alfabética tão logo terminasse a campanha. Ela, rapidamente me entregou a tirinha recortada do formulário que havia preenchido para que eu pudesse apresentá-la no serviço de saúde. E foram dias, semanas de espera. Yoshiko, apesar de um pouco mais aliviada porque dividira a preocupação comigo, continuava abatida. Liguei inúmeras vezes para saber se o serviço de arquivamento havia terminado, e nada... Completada a terceira semana, fui pessoalmente ao serviço de saúde. A sala onde estavam as caixas era um caos deflagrado... Pilhas e pilhas de folhas esperando a organização alfabética, os arquivos ainda vazios. No trabalho havia apenas uma voluntária. Desarvorada, perdida... Ofereci ajuda para o final de semana, e ela agradeceu com um largo sorriso.
Combinei com Yoshiko, e no sábado de manhãzinha mergulhamos no trabalho do arquivo, juntamente com outras voluntárias. Se o material ainda estivesse em caixas, a busca seria mais fácil, poderíamos achar os formulários da nossa empresa. Mas tudo havia sido misturado. Eu me preocupava mais em colocar em ordem alfabética, mas Yoshiko repassava as folhas numa pesquisa voraz. Fazia pena... E assim foi o sábado. No domingo, começamos ainda mais cedo. Yoshiko, um pouco mais desgastada pelo insucesso da procura do dia anterior, tinha um olhar meio dispersivo, incrédulo. Falávamos pouco durante a organização. Eu até rezava. Achar aquele papel era o propósito que traria a paz de Yoshiko. Podia parecer bobagem, mas não era. Para Yoshiko era vital. Começava a escurecer, final de outono, e aproximava a hora de encerrar o trabalho. Fomos guardar no arquivo o último lote separado no dia, e Yoshiko pegou o final da pilha, as letras finais do alfabeto. Passados alguns minutos, ela soltou um grito: “ACHEI!!!”.
Nem acreditei! Estava ali, nos formulários já arquivados, a folha com o nome dela. Ela ria, chorava, pulava... Feliz, feliz como uma criança que ganhou o presente sonhado. Que alívio! Hoje somos idosas. A vida nos levou por destinos diferentes, mas continuamos aqui, vivas, firmes. Será que ela mudou de ideia?! Nem ouso perguntar... A doação, igual a toda e qualquer decisão, deve ser fruto de uma análise profunda, de um amadurecimento de ideia, de meditação, de aceitação, de discussão. Há tempo para tudo. Da vida nasce vida, da morte doamos vida...

Regina Ruth Rincon Caires


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