A
VENDA DO SEU CHICO
Desordem maior não poderia haver.
Aos olhos de quem chegava, a venda do Seu
Chico era um amontoado de coisas que se misturavam e se completavam,
embaraçando o entendimento. Era o armazém do centro, de frente para a praça da
matriz. Prédio antigo, quatro portas de duas folhas de madeira judiada, sem
claridade, sem janelas, paredes baixas, e, consequentemente, telhado baixo. No
madeiramento empoeirado, que sustentava as velhas telhas comuns, penduravam-se
artigos de toda sorte. Tachos de cobre, baldes, suportes para coar café,
penicos, chuveiros de zinco, lamparinas, ralos... Bastava o freguês escolher um
lampião que estivesse dependurado, lá ia Seu Chico, com a vara de gancho na
ponta, buscá-lo lá no alto. E era muita coisa dependurada. Parecia que a venda
estava dependurada.
A venda do Seu Chico era daqueles
estabelecimentos onde a vassoura era somente artigo de venda. O piso do
armazém, todo feito em tijolo cru, era uma terra só. Terra de anos e anos,
misturada aos grãos de feijão, de milho, de café em coco, misturada a tudo que
caísse das conchas na correria de atender o freguês.
Seu Chico morava com a família nos fundos do
armazém, como quase todos os comerciantes da vila. A casa era parede-meia com a
venda, e a sujeira também se estendia para dentro. Era um homem simples, que sabia
bem fazer contas, de aparência muito descuidada, sempre de chinelos, cabelos
sujos e despenteados, e com um cigarro de palha apagado no canto da boca. Boca
de poucos dentes. Pálido, magro, e muito calado. Falava o necessário, e só. Impossível
compreender a vida vivida em meio a tão pouca limpeza. Quase nada, ou nada.
Tudo muito sujo. Imundo.
O balcão de atendimento era bem para
dentro, dividia a venda, na horizontal. Na verdade, eram dois balcões de madeira
escura. Escura, não sei se pela cor natural da madeira, ou pela sujeira
acumulada. Os dois balcões, dispostos lado a lado, deixavam uma pequena
passagem, no centro, onde um tampão com dobradiças servia para a entrada e
saída dos vendedores: Seu Chico, esposa e filhos. Dos balcões para a porta da
rua, amontoavam-se sacarias de mantimentos. Sacas fechadas e abertas. Algumas
arregaçadas como bocas abertas, e as conchas enterradas no feijão, no arroz,
nas farinhas, no açúcar... Tudo vendido a granel.
Pelos cantos, pilhas de balaios, pilhas
de chapéus de palha, feixes de cabos de enxada, de enxadão, de machado, de
vassoura, rolos de arame, rolos de tela, rolos de tripas para linguiça, rolos
de fumo, pilhas de peneiras, tachos, bacias... Tudo disposto numa desordem que
espantava.
Sobre o balcão, perto do tampão da
passagem, ficava a velha balança de dois pratos. Empoeirada, ensebada. Balança
que não era retirada dali havia anos, tamanha a sujeira que se juntara sob ela.
A parte da frente dos balcões era feita de esquadrias de madeira com vidros.
Alguns quebrados, e os outros opacos pela falta de limpeza. Dentro havia duas
prateleiras. Ali ficavam os sabonetes, pastas, talcos, pós-de-arroz, pentes,
escovas, pilhas, lápis, borracha, alguns cadernos, pequenos espelhos, grampos
de cabelo, linhas, agulhas, tesouras, baralhos, botões, elásticos, camisinhas
para lampiões, linha de pescar, anzóis... Enfim, todas as miudezas, como o Seu
Chico mesmo dizia. Tudo na mais perfeita desordem. Tudo jogado, revirado.
Ninguém mais conseguiria achar o que o freguês pedia se não fosse o Seu Chico. Sentia-se
integrado naquele caos, a vida dele era assim.
Do balcão para dentro, existia um espaço
que era para a circulação da família do Seu Chico no atendimento dos fregueses.
E no chão ficavam as caixas de sabão em barras, latas de óleo, engradados de
bebidas, latas de querosene, caixotes de bacalhau, de manjuba...
Na parede do fundo, tirante o espaço da
porta que dava para a casa do Seu Chico, toda ela, a parede, era tomada por
prateleiras. E nessas prateleiras ficavam as panelas, pratos, tigelas, copos,
bebidas, latarias, botinas, alpargatas, caixas de chapéu panamá, venenos, tudo
esperando para ser vendido. Uma parte das prateleiras era reservada para as
bebidas vendidas a granel, servidas em copos imundos. Mercadoria muito vendida.
Tudo passava pelas mãos do Seu Chico ou
de um familiar. O freguês pedia o produto, este era tirado da prateleira, ou
era acondicionado em sacos de papel e pesado na velha balança. O freguês não se
servia de nada, diferentemente de hoje. Apenas pedia, e o vendedor buscava. E
no dia a dia quase não se via dinheiro. Tudo que era vendido era marcado na
conta do fiado em cadernetinhas individuais. Portanto, o pagamento era feito mensalmente
pelos fregueses, quase sempre no início do mês. Dinheiro mesmo só era visto no
comecinho do mês, quando chegava o pagamento dos fregueses. Até mesmo a pinga
era marcada no fiado! Seu Chico não precisava se preocupar com a gaveta do
dinheiro. A preocupação diária era anotar corretamente nas cadernetas de cada comprador.
Dia tal, compra tal, valor tal... O dinheiro, só no próximo mês. E tudo funcionava.
E tudo era vendido. E tudo era pago. Ninguém perdia nada. Não precisava da
defesa do consumidor.
Voltando à venda, perto da porta, à
direita da entrada, havia um suporte feito um batente, um pouco mais alto, com
várias travessas roliças apinhadas de cordas enroladas e de correntes para
serem vendidas. As cordas eram medidas e facilmente cortadas com facas bem
afiadas. Já as correntes, de espessuras e bitolas diferentes, eram vendidas a
quilo, mas para cortá-las era uma trabalheira danada. Seu Chico usava uma cunha e uma marreta de
ferro para separar os grilhões. E essa operação era feita sobre uma estrutura
de ferro colocada ao pé do suporte. Era uma caixa de ferro, grande, lisa, tão
pesada que dava a impressão de que nunca saíra do lugar. A corrente era
enrolada, colocada sobre essa caixa, e com a cunha sobre o grilhão que se
queria partir, Seu Chico marretava inúmeras vezes, até que a argola da corrente
se partisse. E essa operação foi repetida infinitas vezes, por décadas e
décadas.
Como acontece a todos, a vida do Seu
Chico chegou ao fim. Partiu e deixou seus filhos na lida do armazém. Foi por
pouco tempo. Com a chegada da modernidade, o chamariz do supermercado, a
mudança da freguesia, a venda do Seu Chico foi ficando sem compradores, minguando.
As mercadorias iam sendo vendidas muito lentamente, a reposição deixava de ser
feita porque o dinheiro estava curto... E
chegou o dia em que a venda não mais se sustentava.
As portas foram fechadas, e o prédio
precisou ser vendido... Tudo o que havia dentro do armazém foi vendido, cedido,
jogado. Apenas a velha caixa de ferro, usada por tantos e tantos anos para
fazer o corte das correntes, imensamente pesada e sem nenhuma serventia, foi
deixada no fundo do terreno, beirando o muro. E, sem o interesse do novo
proprietário, tudo ali ficou abandonado por anos e anos a fio. O velho prédio,
de tanto desgaste e sem qualquer manutenção, veio abaixo. E tudo ali continuou
abandonado.
Numa tarde de novembro, um calor de
deserto tomava conta da vila, o sol castigava como há muitos anos não
acontecia. Uma situação à beira do insuportável. De repente, a vila foi abalada
por um estrondo. A terra tremeu sob os pés dos moradores, e causou uma gritaria
geral. Todos corriam para fora das casas, do comércio, da escola, da igreja. Um
rebuliço danado, ninguém se entendia... Um alvoroço!
Aos poucos, recobrado o juízo, começaram
a raciocinar e entenderam que o estrondo havia acontecido no centro. Todos
correram para lá. E acertaram... Sobre os velhos escombros do armazém do Seu
Chico havia uma nuvem negra de poeira e fumaça, e um cheiro de pólvora tão
intenso que incomodava a respiração. Todos se juntaram na praça. Não demorou
muito e o jipe da polícia estacionou em frente. Os dois meganhas observaram,
conversaram com alguns moradores, e seguiram em direção do antigo armazém,
andando por sobre os velhos escombros. Quando vislumbraram o fundo do quintal,
atrás dos escombros, levaram as mãos às cabeças. E, voltaram apavorados. No
fundo do quintal, uma cratera imensa fora formada.
E, depois de muita perícia, de muitos
estudos, foi explicado aos moradores que o estrondo fora provocado pela caixa
de ferro da venda do Seu Chico. A velha caixa, imensamente pesada, que o Seu
Chico usara por anos e anos, era na verdade uma bomba, um artefato que fazia
parte do arsenal bélico da Segunda Guerra. Nunca se soube como chegara até ali,
mas era uma bomba. E, diante da exposição continuada ao sol, anos e anos de
calor intenso, foi inevitável a explosão.
A notícia correu a região, espalhou-se pelos
quatro cantos, até a televisão chegou ao local dos fatos. Depois de tantos e
tantos anos marcados pelas peripécias vividas, por fim a venda do Seu Chico entrou
na modernidade, e sua história foi contada na mídia.
Se Seu Chico fosse vivo, acho que teria
ficado muito orgulhoso! Ou será que não?!
Regina
Ruth Rincon Caires
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