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domingo, 22 de dezembro de 2019

VALENTIM




VALENTIM


Acomodava-se sempre na última carteira, no canto da janela. Apartado, quieto, de olhar disperso. Não participava da aula, mas também não atrapalhava. Alheado. Estudava ali havia muitos anos, morava no bairro. Aluno de desempenho sofrível, sempre apresentando imensa dificuldade de aprendizagem. Mas era de paz. Sem qualquer esforço, ganhara a afeição de todos.
Valentim não faltava, não cabulava aula. Era quase sempre o primeiro a chegar ao portão da escola. Madrugador. De aspecto bem cuidado, uniforme impecavelmente limpo. Com trajes nem sempre novos, mas asseados. Nas reuniões de pais, a figura que se apresentava era a avó materna. Infalivelmente. Também muito calada, retraída, mas atenta. Sentava-se nas cadeiras da frente, acompanhava com devotada atenção tudo que era falado. Apesar do desgaste dos anos, trazia semblante sereno, olhos mansos.
Um dia, o portão foi aberto e Valentim não estava lá. Estranho.  E, naquele dia, a carteira do fundo, no canto da janela, permaneceu vazia. Francisco, professor de Português, percebeu. A ausência se estendeu pela semana. Apareceu, dias depois. Abatido, ainda mais silencioso, totalmente absorto. Encabulado, desgostoso. Perguntado sobre as faltas, tentou falar, gaguejou, desdisse. Não queria tocar no assunto.
Francisco não se contentou. Percebia que havia alguma anormalidade, Valentim aparentava embaraço, deixara de ser apenas retraído. Estava aflito. Difícil era a aproximação. Fechava-se feito ostra. De repente, o menino passou a dormir durante as aulas. Debruçava-se sobre a carteira e ali ficava. Imóvel. Muitas vezes, encostava a cabeça no rebordo da janela, cerrava os olhos, ressonava. Ninguém bulia com ele. Era respeitado pela distância que sempre impusera.  Parecia viver só, sem amigos.
Na reunião de pais, Francisco aproximou-se da avó de Valentim. Ressabiado, meio sem jeito, cheio de dedos, perguntou se havia algum problema, se o neto enfrentava alguma moléstia, explicou que o achava debilitado. O olhar da avó não tinha a mesma mansidão, os olhos ficaram marejados, mostravam cansaço. Por um minuto, Francisco acreditou que ela fosse contar alguma coisa, mas, ligeira, disfarçou, refutou qualquer prosa.
A partir dali, com a atitude da avó, a suspeita do professor se consolidou: Valentim precisava de ajuda. Falaria com ele. No dia seguinte, o menino não apareceu.
Francisco procurou o prontuário de Valentim, anotou o endereço e foi até lá.  Casa simples, um minúsculo jardim, organizado. A avó, assustada, encarou o professor. Eram olhos de súplica. Ela o levou para dentro. Calada. Não demorou muito, desatou a chorar. Disse que não sabia onde o neto se encontrava, que, havia algum tempo, ele não falava mais com ela, que se tornou estúpido, sem regras, sem horários. Não se alimentava direito, dormia fora de casa, e estava sempre alterado. Nervoso. O professor perguntou sobre os pais de Valentim. O rosto da avó ficou ainda mais sofrido. Muito encabulada, disse que a filha estava presa. Pela terceira vez. E o pior, que nem mesmo a filha sabia quem era o pai do menino. Um silêncio comprido se instalou. Francisco ficou chateado por não ter sabido disso antes. Deveria ter buscado informação entre os funcionários da escola. Se soubesse da história do menino, não precisaria ter provocado tanto constrangimento para a pobre senhorinha.
A avó percebeu que Francisco ficara chocado e, refeita, procurou desfazer o peso da situação. Timidamente, pediu ajuda. Sentia-se desorientada com a brusca mudança do neto. Queria entender, queria resgatar o convívio de antes. O professor, desassossegado, prometeu que tentaria ajudar, iria procurar desvendar o mistério. Se bem que, pela experiência de tantos anos na lida com adolescentes, sentia uma fagulha a lhe queimar o peito. A fagulha da certeza, da verdade que ele não queria enxergar. Dia melancólico.
Quando Valentim retornou, Francisco o chamou para uma conversa. Sentaram-se num banco, na parte distante e arborizada do pátio. O menino estava contrariado, apreensivo. Difícil o início da conversa. Ele se mantinha retesado, fizera uma blindagem para qualquer argumento. Foi um monólogo, um perguntar sem fim... Sem resposta. Ele só repetia: não preciso de nada. Nenhuma alteração foi percebida no semblante do menino. Saiu dali da mesma maneira que chegou. Apreensivo, blindado.
Francisco falara com muito amor. Fez as perguntas, argumentou. Queria que Valentim sentisse a preocupação que ele, professor, guardava no peito. Que soubesse que havia quem se preocupava com ele. Que ele entendesse a sincera disposição de ajudar, o verdadeiro carinho, afeição. Na verdade, queria que Valentim soubesse que não estava sozinho. Mas, terminada a conversa, sentiu que o menino não absorvera nada do seu mais profundo desejo.
Por um tempo, Valentim ficou afastado. Raras foram as vezes que retornou à escola. Depois, sumiu de vez. O professor continuava buscando notícias, mas nem mesmo a avó sabia do paradeiro.
Numa manhã, Francisco preparava-se para o início da aula e viu, no portão da escola, a figura definhada da avó do menino. Discretamente, ela acenava, desorientada. O professor foi ao encontro dela. Com seu modo reticente, muito abalada, explicou que a polícia estivera em sua casa. Que um corpo havia sido encontrado, que poderia ser Valentim. O corpo precisaria ser reconhecido. Trêmula, suplicou que ele fosse até lá, ela não tinha coragem para tanto.
Infelizmente, era ele.

Regina Ruth Rincon Caires

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