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domingo, 22 de dezembro de 2019

PÁSSARO AZUL





PÁSSARO AZUL

Talvez o desconforto tenha começado no momento em que chegara ao mundo, quando aquela invasiva claridade do holofote, na sala de parto, acertou o seu olhar, impiedosamente. Acho que foi ali, ou em qualquer outro lugar. A única coisa que sabia era que havia um desconforto, um descompasso. Nascera diferente. Di-fe-ren-te - palavra estigmatizante, um codinome que ecoou nos pensamentos durante seus inocentes nove anos. Reiteradamente dita, parecia gravada nos lábios que lhe falavam, nos olhos que lhe fitavam, nos gestos de espanto que lhe dirigiam. E, ironicamente, ele não falava. Ouvia silenciosamente, mudo.
E, por ser assim diferente, gozava de certas regalias. Não lhe cabiam tarefas, era livre. Se é que é possível ser livre dentro do alcance das vistas de adultos. E sua cabeça voava, gostava de voo. O carrinho não era conduzido na pista desenhada do brinquedo, o trenzinho não corria nos trilhos. O fascínio estava no girar das rodas, no girar das hélices, no girar, girar. E no voar. Os carros voavam no ar, os trenzinhos, os aviões, os helicópteros, tudo suspenso nas mãos, tudo fazia parte da revoada circular. Tinha alma de pássaro.
Companheiro inseparável do pai, diariamente fazia o curto trajeto de entrega das verduras e legumes, da fazenda até à cooperativa. Saíam antes de o dia amanhecer, e cruzavam o vale quando o sol começava despontar. Era o momento mágico. O paredão de pedra que se desenhava ao fundo, negro, apinhado de ninhos de aves gigantescas, era o palco do espetáculo de todos os dias. O cenário enquadrava o alto do penhasco e um precipício gigantesco. Seguindo o ritual, o pai desligava o carro, abria a porta para que o filho saísse e pudesse acompanhar a magia. Lá, no pico do desfiladeiro, as aves  lançavam-se no precipício, e davam a impressão de que cairiam verticalmente rente ao penhasco, em linha reta, e, num átimo, em questão de segundos, as enormes asas se abriam como se fossem aparadores divinos, anjos ocultos, e a pressuposta queda era interrompida por um resgate elástico do voo.
O menino prendia a respiração enquanto acompanhava o mergulho de um pássaro, e o seu semblante serenava quando as enormes asas retomavam o voo. Acompanhava um pássaro, dois, três... Ficava ali, embevecido, extasiado, flutuando, até que o pai o trouxesse de volta para o confuso, para o complicado mundo dos incômodos.
Aquela cena, revivida todos os dias, fazia parte do mundo de fantasia do menino. Sentia-se um pássaro. Era um pássaro. E um dia voaria.
As tentativas foram saindo do chão, os braços já sabiam girar no ar todos os brinquedos. Agora precisava treinar as pernas. Começou pelo sofá, pela cadeira um pouco mais alta, passou para a mesa da cozinha. Em meio aos berros preocupados da mãe, o menino se jogava repetidas vezes de todos os móveis da casa. E não reclamava de dor. Não a sentia.
E na cabecinha arrebatada pelo propósito, que talvez nem propósito fosse, o voo persistia. Era foco seleto, visão única daqueles olhinhos bailarinos, teimosos em se fixarem apenas em coisas, em realidade concreta, fugitivos dos olhos de gente.
Durante muitas noites, despertava trêmulo pelo sobressalto de uma queda, sentindo falta de chão, sonhos recorrentes. E eles ficavam guardados, não havia como explicá-los, como falar sobre eles, então ele apenas os vivia. E voava sozinho.
Era alvorada de um dia qualquer, nada diferente de tantos outros, mas, nesse, o menino não estava na cama, como de costume. Saíra na noite anterior, caminhou pouco até chegar ao sopé do desfiladeiro. Na verdade, ninguém sabe quanto demorou, mas é sabido que chegou ao topo, exatamente no mesmo lugar de onde as aves alçavam voo. E voou...

Regina Ruth Rincon Caires
                                                              
                                              

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