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domingo, 22 de dezembro de 2019

A VELHA PRIVADA




A VELHA PRIVADA
           
Eu percebia que a paciência do meu pai havia atingido o limiar da descompostura. Havia mais de um mês, desde que outubro começara, as queixas diárias de minha mãe soavam como ladainha matinal, resmungada.
            O calor impiedoso provocava um rebuliço nas colônias de insetos, um corre-corre de criaturas peçonhentas por todos os cantos. E o queixume da mãe resultava das malditas baratas que teimavam em correr pelas tábuas da velha privada.
            Em casa, como em todas as casas de sítio, a privada ficava afastada. A nossa ficava na baixada, perto do chiqueiro, quase recostada nas lascas de madeira que cercavam o mangueirão. Área de pouco mais de metro quadrado, rústica, paredes de tábuas, cobertura de telhas de coxa esverdeadas pelo limo de tantos anos, cuidadosamente assentadas sobre o madeiramento trançado. O piso era de grossas vigotas, perfeitamente justapostas e com um buraco no centro. A porta que abria para fora, feita de tábuas, tinha um pedaço de corrente usada como fecho. Bastava usar o prego de dentro ou o de fora, e a porta estaria fechada. Enfim, uma estrutura segura, firme, testada pela fúria de muitos vendavais, porém extremamente tosca.
            Todas as manhãs, depois de cuidar do café e de lavar a roupa, minha mãe fazia o mesmo caminho. Munida de um balde com água, vassoura e uma vasilha com cinzas retiradas do coletor do fogão de lenha, seguia rumo à velha privada. Esfregava fortemente o piso com as cinzas e um pouco de água, e depois o enxaguava meticulosamente. Era um cuidado diário.
            Bastava o sol começar a arder para que as baratas começassem a frenética dança. Eram muitas baratas. Minha mãe jurava que elas ficavam pelas paredes internas do fosso, e grudadas nas vigotas, pelo lado de dentro. Meu pai insistia em jogar creolina pelos cantos. Além de deixar um cheiro fortíssimo, que deixava os olhos lacrimejantes, de nada mais adiantava. E o pior é que nem deixar a porta aberta para suavizar o cheiro do desinfetante podia! A porta era mantida constantemente fechada, para que as galinhas e os pintinhos não caíssem pelo buraco.
            Naquela tarde, cumpridas todas as tarefas, porcos tratados, os carneiros já apartados no curral, e terminada a labuta do sarilho para encher as tinas de água que serviriam para lavar as roupas na manhã seguinte, meu pai resolveu travar uma luta, que inocentemente julgava ser definitiva, com as baratas.
            Eu observei meu pai desde que ele acordara naquele dia. Estava extremamente irritado, e ficou ainda pior com o resmungo matutino da mãe. No almoço falou muito pouco. Acho que matutou o plano o dia todo. E, naquele final de tarde, percebendo que ele estava com cara de poucos amigos, fiquei sentada no degrau da escada, na saída do alpendre da cozinha. Eu só o olhava de longe...
            Foi até o paiol, pegou uma espiga de milho e voltou debulhando os grãos, o que alvoroçou as galinhas, que já se encaminhavam para os pés de laranja, em busca do poleiro para o descanso da noite.  Com o sabugo em mãos, virou a palhada toda para cima, como se fosse uma tocha. Colocou-o junto à porta da privada. Passou por mim na escada, foi até a despensa e trouxe duas lamparinas. Na volta, ordenou que eu não saísse dali. Acenei afirmativamente com a cabeça, e obedientemente não arredei pé do lugar. Continuei ali, só observando.
            Meu pai abriu a porta da privada, retirou os pavios das lamparinas e despejou todo o querosene no buraco. Saiu, recolocou os pavios e depositou as lamparinas vazias na calçada, bem perto da escada onde eu estava sentada. Voltou à porta da privada, pegou o sabugo com a palhada espetada, retirou a binga do bolso da calça e ateou fogo nas palhas secas. Quando a chama ardeu, atirou rapidamente o sabugo, em chamas, no buraco e virou-se para correr em minha direção.
            Nem precisou correr...
            Foi um estouro tão estarrecedor que ele foi arremessado, de bruços, para debaixo da laranjeira. As galinhas que ali estavam saíram num só desatino, de asas abertas, cacarejando como nunca. Os porcos dispararam numa correria pelo mangueirão, os carneiros corriam em círculos pela área do curral, berrando como doidos. Os cachorros e os gatos só apareceram tempo depois. Escafederam-se.
            Tudo voou pelos ares. As telhas, o madeiramento, as tábuas que formavam as paredes e a porta, tudo foi parar no mangueirão. As fortes vigotas, que tinham as pontas laterais fixadas na terra, foram arrancadas e duas delas foram parar dentro do enorme buraco que ficou exposto. Uma temeridade!
            Eu nem conseguia me mover, só os meus olhos mexiam. Minha mãe veio gritando de dentro de casa, e com as mãos na cabeça perguntava sem parar o que tinha acontecido. Não demorou nada e a parentada estava toda no terreiro. Tios e primos, que também moravam no entorno do terreirão, acorreram. Os últimos que chegaram foram os meus avós. Andavam devagar, mas chegaram abalados, com os olhos assustados. Minha avó segurava a ponta do avental toda torcida, e tinha a fisionomia preocupada.
            Meu pai continuava lá. Debaixo do pé de laranja, sentado, com as pernas esticadas, todo sujo de terra. No rosto só se viam os olhos. Olhava tudo sem entender o que havia acontecido. Estava zonzo, confuso, assustado. Começou a passar as mãos pela cabeça, nos cabelos suados, cheios de terra. O chapéu voou longe. Pensei em buscá-lo. Melhor, não...
            No terreiro virou uma falação danada. Minha avó foi a primeira a ficar preocupada com o meu pai, prostrado, e falava sem parar: “mi hijo, mi hijo, mi hijo...”.
            Passado o susto, entendendo o que havia acontecido, e conhecendo o temperamento um pouco raivoso do meu pai, todos, silenciosamente, foram deixando o terreiro e seguindo para as suas casas. O acontecido ali poderia ter sido trágico, mas não deixava de ser visivelmente engraçado. E quem ousava rir ali, na frente do meu pai?! Deboche ali, nem pensar! Certamente riram muito no caminho de volta, mas baixinho. Não eram doidos!
            Meu pai se levantou, bateu as mãos pelo corpo para retirar um pouco da terra. Foi à cata do chapéu e, desiludido, olhou pra mim. Estava desolado, evitava encarar a minha mãe que, com as mãos na cintura, balançava negativamente a cabeça.
            Aproximou-se da área da privada. Uma destruição total. Não ficou pau sobre pau. E ao redor do buraco, além de toda a imundície espirrada pela explosão, o chão estava forrado de baratas chamuscadas. Dezenas e dezenas delas com as patinhas voltadas para cima.
            Meu pai sorriu. Sorriso maroto! Virou-se com o peito estufado, como se tivesse saído vitorioso da batalha. Não importava ter destruído tudo, não importava o trabalho que teria para erguer uma nova privada, não importava o olhar de reprovação da minha mãe. A satisfação de saber que todas aquelas criaturas peçonhentas, razão de tanta lamúria e de tanto aborrecimento, todas, sem exceção, sucumbiram.
            Na manhã seguinte, e durante algum tempo, a fila foi formada na porta da privada da minha avó.
            E a mãe não perdoou. Outra ladainha matinal teve início...  

                                 Regina Ruth Rincon Caires                                                               

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