A
VELHA PRIVADA
Eu percebia que a paciência
do meu pai havia atingido o limiar da descompostura. Havia mais de um mês,
desde que outubro começara, as queixas diárias de minha mãe soavam como
ladainha matinal, resmungada.
O
calor impiedoso provocava um rebuliço nas colônias de insetos, um corre-corre
de criaturas peçonhentas por todos os cantos. E o queixume da mãe resultava das
malditas baratas que teimavam em correr pelas tábuas da velha privada.
Em
casa, como em todas as casas de sítio, a privada ficava afastada. A nossa ficava
na baixada, perto do chiqueiro, quase recostada nas lascas de madeira que
cercavam o mangueirão. Área de pouco mais de metro quadrado, rústica, paredes
de tábuas, cobertura de telhas de coxa esverdeadas pelo limo de tantos anos, cuidadosamente
assentadas sobre o madeiramento trançado. O piso era de grossas vigotas, perfeitamente
justapostas e com um buraco no centro. A porta que abria para fora, feita de
tábuas, tinha um pedaço de corrente usada como fecho. Bastava usar o prego de
dentro ou o de fora, e a porta estaria fechada. Enfim, uma estrutura segura, firme,
testada pela fúria de muitos vendavais, porém extremamente tosca.
Todas
as manhãs, depois de cuidar do café e de lavar a roupa, minha mãe fazia o mesmo
caminho. Munida de um balde com água, vassoura e uma vasilha com cinzas
retiradas do coletor do fogão de lenha, seguia rumo à velha privada. Esfregava
fortemente o piso com as cinzas e um pouco de água, e depois o enxaguava
meticulosamente. Era um cuidado diário.
Bastava
o sol começar a arder para que as baratas começassem a frenética dança. Eram
muitas baratas. Minha mãe jurava que elas ficavam pelas paredes internas do
fosso, e grudadas nas vigotas, pelo lado de dentro. Meu pai insistia em jogar
creolina pelos cantos. Além de deixar um cheiro fortíssimo, que deixava os
olhos lacrimejantes, de nada mais adiantava. E o pior é que nem deixar a porta
aberta para suavizar o cheiro do desinfetante podia! A porta era mantida
constantemente fechada, para que as galinhas
e os pintinhos não caíssem pelo buraco.
Naquela
tarde, cumpridas todas as tarefas, porcos tratados, os carneiros já apartados
no curral, e terminada a labuta do sarilho
para encher as tinas de água que serviriam para lavar as roupas na manhã
seguinte, meu pai resolveu travar uma luta, que inocentemente julgava ser
definitiva, com as baratas.
Eu
observei meu pai desde que ele acordara naquele dia. Estava extremamente
irritado, e ficou ainda pior com o resmungo matutino da mãe. No almoço falou
muito pouco. Acho que matutou o plano o dia todo. E, naquele final de tarde, percebendo
que ele estava com cara de poucos amigos, fiquei sentada no degrau da escada,
na saída do alpendre da cozinha. Eu só o olhava de longe...
Foi
até o paiol, pegou uma espiga de milho e voltou debulhando os grãos, o que
alvoroçou as galinhas, que já se
encaminhavam para os pés de laranja, em busca do poleiro para o descanso da
noite. Com o sabugo em mãos, virou a
palhada toda para cima, como se fosse uma tocha. Colocou-o junto à porta da privada.
Passou por mim na escada, foi até a despensa e trouxe duas lamparinas. Na
volta, ordenou que eu não saísse dali. Acenei afirmativamente com a cabeça, e obedientemente
não arredei pé do lugar. Continuei ali, só observando.
Meu
pai abriu a porta da privada, retirou os pavios das lamparinas e despejou todo
o querosene no buraco. Saiu, recolocou os pavios e depositou as lamparinas
vazias na calçada, bem perto da escada onde eu estava sentada. Voltou à porta
da privada, pegou o sabugo com a palhada espetada, retirou a binga do bolso da
calça e ateou fogo nas palhas secas. Quando a chama ardeu, atirou rapidamente o
sabugo, em chamas, no buraco e virou-se para correr em minha direção.
Nem
precisou correr...
Foi
um estouro tão estarrecedor que ele foi arremessado, de bruços, para debaixo da
laranjeira. As galinhas que ali estavam saíram num só desatino, de asas
abertas, cacarejando como nunca. Os porcos dispararam numa correria pelo
mangueirão, os carneiros corriam em círculos pela área do curral, berrando como
doidos. Os cachorros e os gatos só
apareceram tempo depois. Escafederam-se.
Tudo
voou pelos ares. As telhas, o madeiramento, as tábuas que formavam as paredes e
a porta, tudo foi parar no mangueirão. As fortes vigotas, que tinham as pontas
laterais fixadas na terra, foram arrancadas e duas delas foram parar dentro do
enorme buraco que ficou exposto. Uma temeridade!
Eu
nem conseguia me mover, só os meus olhos mexiam. Minha mãe veio gritando de
dentro de casa, e com as mãos na cabeça perguntava sem parar o que tinha
acontecido. Não demorou nada e a parentada estava toda no terreiro. Tios e
primos, que também moravam no entorno do terreirão, acorreram. Os últimos que
chegaram foram os meus avós. Andavam devagar, mas chegaram abalados, com os
olhos assustados. Minha avó segurava a ponta do avental toda torcida, e tinha a
fisionomia preocupada.
Meu
pai continuava lá. Debaixo do pé de laranja, sentado, com as pernas esticadas,
todo sujo de terra. No rosto só se viam os olhos. Olhava tudo sem entender o que
havia acontecido. Estava zonzo, confuso, assustado. Começou a passar as mãos
pela cabeça, nos cabelos suados, cheios de terra. O chapéu voou longe. Pensei
em buscá-lo. Melhor, não...
No
terreiro virou uma falação danada. Minha avó foi a primeira a ficar preocupada
com o meu pai, prostrado, e falava sem parar: “mi hijo, mi hijo, mi hijo...”.
Passado
o susto, entendendo o que havia acontecido, e conhecendo o temperamento um
pouco raivoso do meu pai, todos, silenciosamente, foram deixando o terreiro e
seguindo para as suas casas. O acontecido ali poderia ter sido trágico, mas não
deixava de ser visivelmente engraçado. E quem ousava rir ali, na frente do meu
pai?! Deboche ali, nem pensar! Certamente riram muito no caminho de volta, mas
baixinho. Não eram doidos!
Meu
pai se levantou, bateu as mãos pelo corpo para retirar um pouco da terra. Foi à
cata do chapéu e, desiludido, olhou pra mim. Estava desolado, evitava encarar a
minha mãe que, com as mãos na cintura, balançava negativamente a cabeça.
Aproximou-se
da área da privada. Uma destruição total. Não ficou pau sobre pau. E ao redor
do buraco, além de toda a imundície espirrada pela explosão, o chão estava
forrado de baratas chamuscadas. Dezenas e dezenas delas com as patinhas
voltadas para cima.
Meu
pai sorriu. Sorriso maroto! Virou-se com o peito estufado, como se tivesse
saído vitorioso da batalha. Não importava ter destruído tudo, não importava o
trabalho que teria para erguer uma nova privada, não importava o olhar de
reprovação da minha mãe. A satisfação de saber que todas aquelas criaturas
peçonhentas, razão de tanta lamúria e de tanto aborrecimento, todas, sem
exceção, sucumbiram.
Na
manhã seguinte, e durante algum tempo, a fila foi formada na porta da privada
da minha avó.
E
a mãe não perdoou. Outra ladainha matinal teve início...
Regina Ruth
Rincon Caires
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