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domingo, 22 de dezembro de 2019

AMARGA TRAVESSIA







AMARGA TRAVESSIA


Pela vibração das tábuas dispostas no piso metálico, sob os pés, percebia-se que o vapor começava a movimentar-se. As roldanas giravam, e hélices iam cortando as águas salgadas. Seriam dias e dias de giros. O mar inteiro seria cortado. O apito grave e moroso traduzia a tristeza da partida. No convés, centenas de passageiros com olhares perdidos e saudosos, engoliam o medo do desconhecido. A névoa da madrugada deixava o cais hispânico cada vez mais distante, cobria o minúsculo contorno da pátria deixada. Não era vontade. A iminência da guerra, a fome e a peste não deixaram escolha. Desolados, muitos partiram...
No dia anterior, passamos a tarde toda em imensas filas, arrastando o velho baú e outras matulas com pertences e provisões. Apresentação dos passes, contagem dos integrantes de cada família, avaliação médica que exigia colocar a língua para fora e puxar o canto dos olhos. Ficamos acomodados no segundo porão, quatro lances de escada abaixo do convés. Cada passageiro, ao chegar ao piso, recebia uma saca com palhas secas que seria usada como colchão, menos as crianças. Estas deveriam aninhar-se com os pais, era preciso economizar espaço.  Eu, apesar dos meus onze anos, como era espigado, recebi uma saca. Teria que dividi-la com Enrico, o irmão menor. A pequena Estelita ficaria com a mãe.
Passada a atribulação da partida, os passageiros encaminhavam-se para os refúgios. De cabeça baixa, cada qual carregava a sua insegurança. O primeiro porão ainda trazia algum conforto. Havia múltiplos beliches de lona, privadas separadas para homens e mulheres. Porão reservado para os mais remediados, com cobrança de ágio. Impossível para nós.
No segundo porão, nosso refúgio, os baús serviam de biombos que separavam as famílias. Centenas e centenas deles espalhados pelo ambiente, formavam ilhas de pessoas. Amontoados de gentes e trastes. De resto, seria aturar aquele balançar interminável, o rebuliço no estômago, o vômito incontrolável.
Em nenhum momento as vozes silenciavam por completo. Havia sempre um resmungo de mal-estar, uma ralha, um choro mais estridente de criança em desconforto, uma fala doce para apaziguar o medo. Sem contar o rame-rame sonoro vindo da casa de máquinas. Porém havia escuridão no céu, cansaço nos corpos, então nem o murmurinho atrapalhava o sono profundo de muitos.   
Confesso que dormi pouco naquela noite. E em muitas outras. Enrico mostrava um desassossego de pernas que incomodava. Não só pelas pancadas, mas pelo ruído das palhas secas. Ele estava sofrendo mais que nós todos. Menino arredio, amofinado. Em casa, vivia pelos cantos. 
O sol nos pegou acordados. Se bem que a claridade do porão era ínfima. O ar e a luminosidade passavam apenas pelas duas escotilhas existentes entre os dois porões e que, na maioria dos dias, permaneciam abertas. O tênue facho de luz deixava à mostra o aspecto lamentoso daquela realidade. Semblantes contrariados. 
De nós, só o pai foi ao convés para o banho de sol. Ficamos ali, engolindo o pão seco trazido na bagagem. A mãe, de pé, tentava esticar as pernas e rodear o velho baú. Havia pouca coisa a ser feita. Ou muita...
O único banheiro era insuficiente para atender a todos, restava recorrer aos urinóis.  As crianças não se acanhavam, mas, para os mais velhos, o uso ficava restrito à escuridão da noite.  E de manhã, para esvaziá-los, era uma conturbação de mulheres na porta do banheiro. O cheiro ficava insuportável. Com o balanço das águas e a fetidez do ambiente, as náuseas multiplicavam-se. E a travessia ainda estava no início.
Enrico não se alimentava. Aceitou um pouco de água, que não parou no estômago. Não estava bem. Passou o dia aninhado no colchão. Calado, olhos turvos. Havia, no semblante, mais que mal-estar do corpo. Travava luta de pensamentos. Preocupava-me.
E, a cada dia, a viagem tornava-se assustadoramente desumana. Passada a primeira semana, as provisões escassearam. Não tínhamos quase nada. O pão, mesmo embolorado, seria suficiente apenas para mais dois dias. A sopa servida a todos, além de insípida, era desprovida de nutrientes e de higiene.
Ficava evidente o abatimento físico dos passageiros. Os homens já não se entusiasmavam pelo jogo de cartas, fumavam desesperadamente, e a bebida tornou-se ainda mais companheira. Havia muitos passageiros acamados. Pouco se comentava sobre isso, era quase um tabu tocar no assunto. Quando a tosse era ouvida, as famílias em redor se entreolhavam, porém nada, absolutamente nada era dito. Tornou-se um segredo respeitoso, que na verdade não era segredo. Era medo, camuflado pavor.
Enrico definhava a olhos vistos. Calado, insone, inapetente. Ouvia tudo, observava. Notava os menores movimentos. E temia. Na escuridão da noite, bem próximo a ele, eu percebia que quando qualquer passageiro era acometido por crises de tosse, ele erguia a cabeça e olhava em direção do ruído. E as crises foram se tornando tão frequentes que nem mesmo as vozes das mulheres entoando os cânticos religiosos encobriam o som assustador.
A superlotação era tamanha que o ar foi se tornando irrespirável. Os corpos sujos, sem qualquer zelo, as roupas impregnadas com o suor de semanas, os cabelos ensebados, o piso lambuzado de vômito, urina, restos de comida e bebida, o banheiro e os urinóis sujos, tudo exalava um azedume que embaralhava o juízo.
Ainda era noite, e, de repente, Enrico começou a puxar minha perna. Foram vários cutucões até que eu percebesse que ele queria me mostrar algo. Ainda meio sonolento, pude ver pessoas da tripulação descendo as escadas, trazendo maca de lona.  Em meio a choros abafados, rezas sussurradas, o passageiro era colocado na maca e carregado escada acima. E isso aconteceu na outra noite, e na outra, e na outra.
Logo a notícia correu. A febre estava no navio. O caso nunca era contado pela família do doente. Era revelado pela família que estava acomodada ao lado, horrorizada com a possibilidade do contágio iminente. E, desta maneira, o pavor passou a dominar os dias e as noites.
O pai disse que os primeiros casos apareceram no porão de cima, que até mesmo o médico da tripulação fora contaminado. E a partir daí, o convés passou a ficar ainda mais apinhado durante todo o dia. Os homens, aterrorizados, quase não voltavam para os porões. Enquanto houvesse sol, ficariam ao ar livre. O risco seria menor... Ou não.
E o médico morreu. Uma solenidade rápida foi feita e ele foi lançado ao mar. Quando o pai nos contou sobre isso, Enrico encolheu-se na cama, abraçou as pernas e pôs-se a tremer. Era um medo tão desmesurado que afligia. Frágil, indefeso. Deitei-me ao lado dele e o abracei com força. Fiquei ali até que o tremor passasse. E ele dormiu.
Então compreendemos que as pessoas que eram retiradas com as macas não eram tratadas, não havia médico. Eram lançadas ao mar, vivas. Muitas delas nem sabiam que estavam sendo levadas, estavam mal, delirantes. As famílias sabiam que  não estavam mortas, e também sabiam que elas não poderiam continuar ali. Sem escolha.
As noites passaram a ser ainda mais tristes, como se fosse possível. Mesmo com a explicação do pai de que não havia chance de cura, de que a febre era fatal, Enrico não conseguia assimilar. E passava a noite contando os passageiros carregados nas macas. E tremia. E, mansinho, chorava.
A mãe andava tão entristecida que já não catava os nossos piolhos. A cabeça coçava, ardia. As picadas faziam feridas. Ela mostrava olhos fundos, havia perdido carnes, a pele estava pálida, azulada. O rosto murcho, desidratado. Silente. Não se ouvia mais o seu canto de anjo, as rezas ficaram mudas. Percebia-se apenas o movimento dos dedos nas contas do rosário.
E havia pessoas que gritavam ao serem transportadas nas macas. Não tinham força para lutar, só sobrara o grito. Só isso. Sabiam do destino que as esperava. E quando isso acontecia, todos choravam. Enrico se descontrolava. Eu o abraçava com força.
Acomodado ao nosso lado, havia um casal. Apenas os dois. O homem aparentava mais idade, a mulher era bem jovem. Ela vomitava desde que o vapor deixou o cais. Estava pele e osso. Andava pouco, tomava a sopa mostrando a repugnância que lhe causava, mas tomava.  O homem estava sempre a buscar uma caneca com água para que ela bebesse. Havia muito carinho entre os dois. Demorei a perceber que ela estava prestes a ter um filho. O excesso de roupas não permitia visualizar a silhueta. Só fui saber quando ela começou a chorar, a gemer e minha mãe correu até ela para acudir. 
Foi levada para um canto e várias mulheres se juntaram. Horas de agonia até que a criança nascesse. Um menino. Miúdo, de chorinho fraco. A mãe, quando voltou, falou que a criança não vingaria, que respirava com muita dificuldade. Veio antes do tempo.
A mulher voltou para perto de nós quase desfalecida. Ajeitou-se sobre o colchão de palha, mas perdia muito sangue. Colocou a criança ao lado e ambas dormiram. Já era madrugada quando começaram os gemidos. Na penumbra, o marido entendeu que ela estava muito mal. Assustou-se quando não encontrou a criança. Perguntou sobre o filho, mas a mulher fez sinal para que ele ficasse quieto, não queria que o acordasse. Ela dizia que a criança estava bem, que estava descansando. O homem achou muito estranho e começou a rodear os pertences em busca da criança. Quando abriu o baú, caiu no choro. O filho estava lá dentro, gelado, morto. E na hora da entrega do corpinho para a tripulação, todos choraram. A mulher variou o dia todo. Gemia, sangrava, delirava. Na noite seguinte, foi levada. Não sobreviveu, o sangramento não cessou.  E o homem ficou só. Quieto, sem lágrimas. E Enrico se contorcia de pavor, não perdia uma cena, uma palavra.
O vapor estava bem próximo do destino. A febre consumira quase metade da tripulação e passageiros. O espaço dentro dos porões era bem maior, e a sujeira também. De nós, apenas Estelita apresentava quadro de saúde preocupante. Recusava-se a comer, queixava-se de dor na garganta, vomitava com mais frequência. A mãe vivia encostando as costas da mão na testa da menina, medo da febre. E ela veio. Intensa. Em dois dias, Estelita foi levada pela tripulação. Eu não soube se estava viva ou morta. A mãe nunca falou. Só chorou. Chorou por dias... Chorou a vida inteira.
Em alto mar, outro navio nos interceptou. Teríamos que guardar quarentena a quilômetros da costa. Alimentos foram trazidos para reabastecer a cozinha, banhos foram oferecidos com jatos d’água. E os médicos seriam disponibilizados uma semana depois, quando então seríamos colocados em outro navio.
E nesta última semana a bordo do antigo navio, ocorreram as últimas mortes. Muitas. Os mais debilitados não resistiram, e os demais, como nós, empenharam-se em engolir a intragável sopa com mais tolerância. Era a única salvação.
Depois da transferência, foram mais doze dias para atracarmos no porto de Santos. Destroçados, descarnados, de almas amputadas, mas vivos.


***


Minhas pernas cansadas fizeram este caminho centenas de vezes. Agora, andam trôpegas. Talvez as visitas cessem, não por minha vontade, mas por exigência da vida. Ou da morte. Ainda preciso abraçá-lo. Isso o acalma. Sempre foi assim.
Quando me vê, Enrico abre um sorriso. Já não caminha. Apesar de ser mais novo que eu, a vida foi mais severa com ele. Fica à minha espera no banco do minúsculo jardim da casa de custódia. Aninha-se no meu abraço forte. Aquece-se do meu amor. E é sempre a mesma conversa.
- O pai não veio com você? A mãe não veio?
- Não, Enrico. Eles não vieram.
- Eu sei. Eles não entendem que eu não matei as pessoas. Eu não matei aqueles doentes, eles iam morrer de qualquer jeito. Não havia cura, a doença era fatal. E aquelas crianças, eu não matei! Elas só estavam descansando... Eu juro! Por favor, Manolito, converse com eles, eles vão acreditar em você!
- Acalme-se, Enrico, eu vou falar com eles.
Como explicar a ele que a mãe morreu logo que ele foi preso, e que o pai, alucinado, partiu logo em seguida. Será que compreenderia? Enrico trabalhava como auxiliar de limpeza do hospital. Serviço pesado. Cuidava desde o recolhimento de resíduos das lixeiras, dos descartes cirúrgicos, do ensacamento e acompanhava o transporte para as fornalhas de incineração. As mortes ocorreram na ala da enfermaria, sempre no turno da noite. Nunca se soube quantos morreram. Todos indigentes. O último crime foi evitado em razão do grito do paciente, ouvido pelo operador da caldeira, quando ia ser arremessado ao fogo. E, então, Enrico foi preso.   

  
                                                         ***


E um dia, quando cheguei para a visita, o banco estava vazio. Enrico havia sido levado pela tripulação.

              Regina Ruth Rincon Caires
                                              


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