RETRATO
DE UM CASAMENTO
O casamento, planejado
havia meses, aconteceu em meio a um dia de sol intenso, um calor inclemente. O
noivo, Omar, dono de uma loja de calçados, filho de árabes, somou cada centavo
de gasto para a cerimônia. Desde o terno, a despesa do cartório, da igreja, do
fotógrafo... Tudo planejado e anotado. E programara, também, manter a loja
fechada num curto período de cinco dias, tempo reservado para a lua-de-mel. A
noiva, Rosália, era moça de pouco estudo, mas de muito preparo para se tornar
uma esposa perfeita. Prendada, sabia cozinhar e costurar. Após o casamento,
além de cuidar da casa, ficara combinado que ajudaria o marido nos cuidados com
a loja.
Era maio. A cerimônia
seria feita na parte da manhã, um almoço seria servido aos convidados mais
reservados – pais, padrinhos e parentes – depois cortariam o bolo e, em seguida,
os noivos partiriam na jardineira das duas horas da tarde. Tudo previamente
arquitetado.
Mal amanhecera e a casa
da mãe da noiva estava em polvorosa. Tudo seria preparado ali e a festa seria
no quintal, debaixo das imensas mangueiras. As mesas, erguidas sobre cavaletes,
foram montadas de véspera. A comida, preparada no fogão a lenha, estava sob os
cuidados das cozinheiras que rodeavam a mesa. Os assados, acondicionados em
enormes tabuleiros, aguardavam o aquecimento do forno de barro. O bolo seria
presente da madrinha da noiva. Chegaria quando tudo estivesse preparado.
Rosália não poderia
colaborar na arrumação. Reservara o tempo para a cabelereira, manicure e maquiagem.
Estava tão ansiosa que nem conseguia tomar o café da manhã. Depois do banho,
partiu para o embelezamento.
Cuidando dos últimos detalhes,
tendo a preocupação de confirmar com o Juca do táxi para não atrasar a chegada
da noiva à igreja, mesmo sabendo que a distância era de apenas dois
quarteirões, Omar estava esbaforido. Igualmente ansioso, sentia uma fome
desesperada. Começou o dia com um café reforçado: pão com manteiga, leite com
chocolate, e fatias de queijo branco. Empanturrou-se. E não se sentia
satisfeito. A sensação de fome não passava. Resolveu, então, dar uma passada na
casa da noiva para acompanhar os preparativos e ficou animado com o cheiro
agradável da leitoa assada que se alastrava pelo quarteirão.
O casamento teve seu
início no horário marcado. A cerimônia foi muito bonita, emocionante,
exatamente como Rosália havia sonhado. Um primor! Depois dos cumprimentos, os
noivos e os convidados seguiram para a festa. Comidas deliciosas, alegria
contagiante, vivas aos noivos, aos pais dos noivos, palmas, cantorias...
Rosália não sentia
fome, comeu apenas um pouquinho de arroz temperado e salada. Já, Omar comia
desesperadamente. Encantou-se com a leitoa e com a pururuca crocante. Era um
rapaz magro, excessivamente magro. Não dava para entender como conseguia comer
tanto!
Quando o bolo foi
servido, Rosália não experimentou, razão pela qual a mãe colocou um generoso
pedaço acomodado em uma caixa de papelão para que ela comesse quando chegasse
ao destino da lua-de-mel. Omar comeu várias fatias e ainda caprichou na
quantidade de glacê.
Terminada a festança, a
noiva mudou a roupa, fechou a mala e entre abraços, beijos, acenos e ouvindo o
choro incontido da mãe, seguiu para o ponto do ônibus. Pontualmente, às duas da
tarde, embarcaram.
Na jardineira, o
bagageiro era externo. Ficava na parte superior do veículo. O cobrador, para
organizar as malas, utilizava uma escada lateral fixa e os volumes eram
amarrados com corda. Na estrada, a terra vermelha subia dos pneus e
acomodava-se sobre a bagagem. Quando o passageiro chegava ao destino, era até
difícil de reconhecer os pertences. Tudo coberto por uma camada de pó.
Omar e Rosália
ajeitaram-se nos assentos, a caixa com o bolo era levada no colo, junto à bolsa
de mão. O calor dentro da jardineira era um absurdo. Com as janelas
escancaradas a poeira incomodava os olhos, grudava na pele suada. Os solavancos
provocados pela péssima condição da estrada nem deixavam os pensamentos se
ajeitarem, quanto mais os corpos! E a viagem seria longa. Nada menos que cinco
horas até chegar ao destino do casal. Normalmente haveria duas paradas durante
o trajeto. O roteiro só era alterado em casos de emergência.
Na jardineira não havia
sanitário. Os viajantes aproveitavam as paradas para irem ao banheiro. Não
havia outro recurso.
Logo que a viagem
começou, Rosália percebeu que, o agora esposo, tinha uma transpiração
diferente, copiosa. O suor minava pelos cabelos e empapava a gola da camisa, o
peito, as costas. Estava ensopado. Realmente o calor era demasiado, mas o suor
de Omar estava anormal. Ele estava pálido, apertava o estômago, nauseado. Não
houve como esperar a parada. Rosália apressou-se a falar com o motorista e
pediu a ele que parasse o veículo para que Omar pudesse sair um pouco,
precisava vomitar. O motorista atendeu prontamente ao pedido, encostou a
jardineira na beira da estrada. Omar, cambaleante, desceu. Bastou sentir o ar
bater no rosto, as ânsias brotaram sucessivas, sem controle, e tudo era ouvido
pelos passageiros. Quando se sentiu aliviado, voltou. Ainda pálido, retomou o
assento. E a viagem prosseguiu.
Omar ficou calado e com
a cabeça recostada na parte alta do banco, como se quisesse cochilar. Rosália
ficou mais calma, achava que a indisposição havia passado. Até pensou em fechar
os olhos e cochilar. Mas estava agitada demais com as festividades do dia, com
a lembrança da cerimônia, com a realização do sonho de se casar, com a
expectativa da noite de núpcias. Queria relembrar, pensar, estava muito feliz.
Nem tinha acalmado o
espírito quando Omar voltou a apertar o estômago e a se contorcer na poltrona.
Dizia que sentia fortes cólicas, que precisava usar o banheiro. Rosália
explicou a ele que a primeira parada não demoraria muito e que procurasse se
controlar até lá. Aflito, suando em bicas, com as pernas levemente erguidas,
Omar ia tentando se dominar, apertando o corpo contra o assento. De repente,
deu um grito e pediu ao motorista que encostasse o carro, urgentemente. O
motorista freou bruscamente, assustado. Omar desceu feito doido, olhava para os
lados, mas não via uma árvore. A jardineira estava quase rente a um barranco
íngreme. Não pestanejou. Abraçou-se ao barranco, foi escalando com as mãos e os
pés, agarrando as pequenas touceiras de capim, até que chegou ao topo.
E Rosália esperava
dentro da jardineira. Envergonhada, toda sem jeito, tentava não encarar os
outros passageiros. Que raiva sentia de Omar, da comilança sem regra! Não
poderia acabar de outra maneira! E Omar não voltava. Aquele silêncio era
constrangedor. O motorista até desligou o motor do carro. Que situação...
Depois de um bom tempo,
deslizando pelo barranco, vem Omar. Estava todo sujo da terra vermelha, a
camisa suada, imunda, a calça de linho estava uma lástima. Sentou-se na
poltrona, muito sem jeito, constrangido. Ficaram calados. Chegaram à primeira
parada. Beberam água, tomaram um ar e retornaram aos assentos. A viagem
continuou.
Passados vinte minutos,
Omar recomeçou com a suadeira. Apertava o estômago, contorcia-se, aflição sem
fim. E o grito ecoou. O motorista enfiou o pé no freio, foi um solavanco que
ergueu todos os passageiros do banco. Um susto. E lá desce Omar, desesperado,
sumindo no meio do mato. E tudo de novo. A demora, o desligar da chave, o
silêncio constrangedor, os olhares de impaciência... E a raiva de Rosália.
Voltou quieto, a
palidez havia passado. Estava corado de vergonha. E voltou sem as meias.
Rosália ficou incomodada, não queria tirar conclusões, mas era inevitável. Se
ele voltou sem as meias, da primeira vez deve ter voltado sem outra peça. Que
pensamento indesejado. Afinal, estava a caminho da noite de núpcias.
Seguindo viagem, tudo
aparentemente calmo. O mesmo calor, a mesma poeira, somando-se ao cansaço.
Rosália nem queria olhar do lado. Omar, de olhos fechados, parecia dormir. Os
ruídos mostravam que o estômago ainda estava em revolução, mas ele esboçava
apenas pequenas contrações na face e um leve mexer de braços. Chegaram ao
destino, já era noite. O hotel ficava próximo ao ponto.
Instalados, Rosália
olhou a caixa do bolo. Quando a destampou, um cheiro acre-adocicado inundou o
quarto. Omar sentiu arrepio, começou a comprimir o estômago. Correu para o
banheiro. E passou quase a noite toda, lá, trancado. Rosália não teve
alternativa. Dispensou a caixa no lixo do corredor.
De manhã, estavam os
dois no balcão da farmácia. Remédios, dieta, repouso absoluto. Difícil foi
explicar a lua-de-mel interrompida. Na vila, a notícia do retorno antecipado
caiu como um torpedo.
...
Recentemente, eles batizaram
o quinto bisneto.
Regina
Ruth Rincon Caires
************************
Nenhum comentário:
Postar um comentário