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domingo, 22 de dezembro de 2019

RETRATO DE UM CASAMENTO





RETRATO DE UM CASAMENTO

O casamento, planejado havia meses, aconteceu em meio a um dia de sol intenso, um calor inclemente. O noivo, Omar, dono de uma loja de calçados, filho de árabes, somou cada centavo de gasto para a cerimônia. Desde o terno, a despesa do cartório, da igreja, do fotógrafo... Tudo planejado e anotado. E programara, também, manter a loja fechada num curto período de cinco dias, tempo reservado para a lua-de-mel. A noiva, Rosália, era moça de pouco estudo, mas de muito preparo para se tornar uma esposa perfeita. Prendada, sabia cozinhar e costurar. Após o casamento, além de cuidar da casa, ficara combinado que ajudaria o marido nos cuidados com a loja.
Era maio. A cerimônia seria feita na parte da manhã, um almoço seria servido aos convidados mais reservados – pais, padrinhos e parentes – depois cortariam o bolo e, em seguida, os noivos partiriam na jardineira das duas horas da tarde. Tudo previamente arquitetado.
Mal amanhecera e a casa da mãe da noiva estava em polvorosa. Tudo seria preparado ali e a festa seria no quintal, debaixo das imensas mangueiras. As mesas, erguidas sobre cavaletes, foram montadas de véspera. A comida, preparada no fogão a lenha, estava sob os cuidados das cozinheiras que rodeavam a mesa. Os assados, acondicionados em enormes tabuleiros, aguardavam o aquecimento do forno de barro. O bolo seria presente da madrinha da noiva. Chegaria quando tudo estivesse preparado.
Rosália não poderia colaborar na arrumação. Reservara o tempo para a cabelereira, manicure e maquiagem. Estava tão ansiosa que nem conseguia tomar o café da manhã. Depois do banho, partiu para o embelezamento.
Cuidando dos últimos detalhes, tendo a preocupação de confirmar com o Juca do táxi para não atrasar a chegada da noiva à igreja, mesmo sabendo que a distância era de apenas dois quarteirões, Omar estava esbaforido. Igualmente ansioso, sentia uma fome desesperada. Começou o dia com um café reforçado: pão com manteiga, leite com chocolate, e fatias de queijo branco. Empanturrou-se. E não se sentia satisfeito. A sensação de fome não passava. Resolveu, então, dar uma passada na casa da noiva para acompanhar os preparativos e ficou animado com o cheiro agradável da leitoa assada que se alastrava pelo quarteirão.
O casamento teve seu início no horário marcado. A cerimônia foi muito bonita, emocionante, exatamente como Rosália havia sonhado. Um primor! Depois dos cumprimentos, os noivos e os convidados seguiram para a festa. Comidas deliciosas, alegria contagiante, vivas aos noivos, aos pais dos noivos, palmas, cantorias...
Rosália não sentia fome, comeu apenas um pouquinho de arroz temperado e salada. Já, Omar comia desesperadamente. Encantou-se com a leitoa e com a pururuca crocante. Era um rapaz magro, excessivamente magro. Não dava para entender como conseguia comer tanto!
Quando o bolo foi servido, Rosália não experimentou, razão pela qual a mãe colocou um generoso pedaço acomodado em uma caixa de papelão para que ela comesse quando chegasse ao destino da lua-de-mel. Omar comeu várias fatias e ainda caprichou na quantidade de glacê.
Terminada a festança, a noiva mudou a roupa, fechou a mala e entre abraços, beijos, acenos e ouvindo o choro incontido da mãe, seguiu para o ponto do ônibus. Pontualmente, às duas da tarde, embarcaram.
Na jardineira, o bagageiro era externo. Ficava na parte superior do veículo. O cobrador, para organizar as malas, utilizava uma escada lateral fixa e os volumes eram amarrados com corda. Na estrada, a terra vermelha subia dos pneus e acomodava-se sobre a bagagem. Quando o passageiro chegava ao destino, era até difícil de reconhecer os pertences. Tudo coberto por uma camada de pó.
Omar e Rosália ajeitaram-se nos assentos, a caixa com o bolo era levada no colo, junto à bolsa de mão. O calor dentro da jardineira era um absurdo. Com as janelas escancaradas a poeira incomodava os olhos, grudava na pele suada. Os solavancos provocados pela péssima condição da estrada nem deixavam os pensamentos se ajeitarem, quanto mais os corpos! E a viagem seria longa. Nada menos que cinco horas até chegar ao destino do casal. Normalmente haveria duas paradas durante o trajeto. O roteiro só era alterado em casos de emergência.
Na jardineira não havia sanitário. Os viajantes aproveitavam as paradas para irem ao banheiro. Não havia outro recurso.
Logo que a viagem começou, Rosália percebeu que, o agora esposo, tinha uma transpiração diferente, copiosa. O suor minava pelos cabelos e empapava a gola da camisa, o peito, as costas. Estava ensopado. Realmente o calor era demasiado, mas o suor de Omar estava anormal. Ele estava pálido, apertava o estômago, nauseado. Não houve como esperar a parada. Rosália apressou-se a falar com o motorista e pediu a ele que parasse o veículo para que Omar pudesse sair um pouco, precisava vomitar. O motorista atendeu prontamente ao pedido, encostou a jardineira na beira da estrada. Omar, cambaleante, desceu. Bastou sentir o ar bater no rosto, as ânsias brotaram sucessivas, sem controle, e tudo era ouvido pelos passageiros. Quando se sentiu aliviado, voltou. Ainda pálido, retomou o assento. E a viagem prosseguiu.
Omar ficou calado e com a cabeça recostada na parte alta do banco, como se quisesse cochilar. Rosália ficou mais calma, achava que a indisposição havia passado. Até pensou em fechar os olhos e cochilar. Mas estava agitada demais com as festividades do dia, com a lembrança da cerimônia, com a realização do sonho de se casar, com a expectativa da noite de núpcias. Queria relembrar, pensar, estava muito feliz.
Nem tinha acalmado o espírito quando Omar voltou a apertar o estômago e a se contorcer na poltrona. Dizia que sentia fortes cólicas, que precisava usar o banheiro. Rosália explicou a ele que a primeira parada não demoraria muito e que procurasse se controlar até lá. Aflito, suando em bicas, com as pernas levemente erguidas, Omar ia tentando se dominar, apertando o corpo contra o assento. De repente, deu um grito e pediu ao motorista que encostasse o carro, urgentemente. O motorista freou bruscamente, assustado. Omar desceu feito doido, olhava para os lados, mas não via uma árvore. A jardineira estava quase rente a um barranco íngreme. Não pestanejou. Abraçou-se ao barranco, foi escalando com as mãos e os pés, agarrando as pequenas touceiras de capim, até que chegou ao topo.
E Rosália esperava dentro da jardineira. Envergonhada, toda sem jeito, tentava não encarar os outros passageiros. Que raiva sentia de Omar, da comilança sem regra! Não poderia acabar de outra maneira! E Omar não voltava. Aquele silêncio era constrangedor. O motorista até desligou o motor do carro. Que situação...
Depois de um bom tempo, deslizando pelo barranco, vem Omar. Estava todo sujo da terra vermelha, a camisa suada, imunda, a calça de linho estava uma lástima. Sentou-se na poltrona, muito sem jeito, constrangido. Ficaram calados. Chegaram à primeira parada. Beberam água, tomaram um ar e retornaram aos assentos. A viagem continuou.
Passados vinte minutos, Omar recomeçou com a suadeira. Apertava o estômago, contorcia-se, aflição sem fim. E o grito ecoou. O motorista enfiou o pé no freio, foi um solavanco que ergueu todos os passageiros do banco. Um susto. E lá desce Omar, desesperado, sumindo no meio do mato. E tudo de novo. A demora, o desligar da chave, o silêncio constrangedor, os olhares de impaciência... E a raiva de Rosália.
Voltou quieto, a palidez havia passado. Estava corado de vergonha. E voltou sem as meias. Rosália ficou incomodada, não queria tirar conclusões, mas era inevitável. Se ele voltou sem as meias, da primeira vez deve ter voltado sem outra peça. Que pensamento indesejado. Afinal, estava a caminho da noite de núpcias.
Seguindo viagem, tudo aparentemente calmo. O mesmo calor, a mesma poeira, somando-se ao cansaço. Rosália nem queria olhar do lado. Omar, de olhos fechados, parecia dormir. Os ruídos mostravam que o estômago ainda estava em revolução, mas ele esboçava apenas pequenas contrações na face e um leve mexer de braços. Chegaram ao destino, já era noite. O hotel ficava próximo ao ponto.
Instalados, Rosália olhou a caixa do bolo. Quando a destampou, um cheiro acre-adocicado inundou o quarto. Omar sentiu arrepio, começou a comprimir o estômago. Correu para o banheiro. E passou quase a noite toda, lá, trancado. Rosália não teve alternativa. Dispensou a caixa no lixo do corredor.
De manhã, estavam os dois no balcão da farmácia. Remédios, dieta, repouso absoluto. Difícil foi explicar a lua-de-mel interrompida. Na vila, a notícia do retorno antecipado caiu como um torpedo.

...

Recentemente, eles batizaram o quinto bisneto.

Regina Ruth Rincon Caires

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