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domingo, 22 de dezembro de 2019

BANHO DE AÇUDE





BANHO DE AÇUDE

         O aviso fora dado pela enésima vez...
         Mas, vivendo a plenitude da meninice, como resistir a um banho de açude naquele calor infernal?!
         Nos arredores da vila, nas áreas de vários sítios e fazendas, os açudes multiplicavam-se ano a ano. Escavados, brotados das minas; enfim, eles espocavam convidativos, tentadores.
         E assim, para o desespero e a preocupação dos pais, não havia tarde que não terminasse com os meninos varando cercas de arame farpado, cruzando plantações, pastagens, e mergulhando nas águas nem sempre limpas daqueles imensos açudes.
         E, apesar dos inúmeros avisos, Mário estava sempre entre eles. Cansava de prometer a si mesmo que não mais desobedeceria às ordens do pai, que não quebraria o acordo firmado com ele, mas era uma tentação quando os ponteiros do relógio da igreja matriz iam marcando três horas da tarde...
         Os meninos, sorrateiros, esgueiravam-se das casas, da praça, e seguiam em direção de algum açude. E aí o coração não resistia! Mário, num átimo, jogava às favas as promessas, e só se acalmava quando sentia o frescor das águas do açude no seu corpo...
         E todos faziam tudo do mesmo jeito. Quando estavam bem próximos do açude, principiavam a correr enquanto desatinados se despiam. Na largueza da inocência, na sofreguidão da liberdade. Calção e camisa eram tirados do corpo e displicentemente enrolados. Cuecas e sapatos não havia. Naqueles tempos, meninos não usavam cuecas, e calçado nos pés era só para a escola, igreja ou passeio.
         Cada um escolhia um lugarzinho para deixar a sua acanhada trouxinha a salvo até que saísse do banho. Podia ser junto ao tronco de uma árvore, na sombra de uma moita de capim, sobre um cupinzeiro, não importava. A única preocupação é que a roupa ficasse protegida da água do açude.
         Mas o pai de Mário queria colocar ponto final naquela série de desobediências, e o pobre caborteirinho nem de longe imaginava que seria justamente naquela tarde.
         Lépido, ardiloso, conluiado com os companheiros, num triscar de olhos atravessava os pastos, as plantações, vazava as cercas, se despia, arrumava as roupas perto do tronco de uma árvore, e se jogava no açude.
         E o açude virava uma festa! A água, antes serena, pipocava com os saltos, e logo, com o incessante pisoteio agitado de todas as crianças, o barro do fundo ia subindo e turvando tudo, até formar um lamaçal. Parecia um bando de jacarés rolando os corpos nus.
         E o barro grudava nos cabelos, nas costas, sob as unhas, nas curvas das orelhas... Por mais que se esfregassem para limpar, não havia como não levar resquícios para casa e, consequentemente, fragilizar a argumentação de que não incorreram na desobediência de nadar nos açudes. As evidências estavam sempre presentes. Se não na roupa, com certeza, no corpo.
         Naquela tarde, no meio das risadas, dos saltos, das brincadeiras, ouviu-se uma voz ao longe, gritando:
         - Mário! Mário, você está aí?!
         Mário, que reconheceu a voz do pai, estremeceu.
         De longe, o açude apinhado de cabecinhas enlameadas, brilhando ao sol, silenciou. Era totalmente impossível reconhecer cada criança.
         O mais experiente deles, numa tirada de mestre e líder, respondeu:
         - Seu Osvaldo, o Mário não está aqui, não!
         E Mário apavorado, petrificado, meio escondido atrás de dois amigos, prendia a respiração, não conseguia arfar o peito tamanho era o medo.
         Seu Osvaldo, aparentando muita calma, respondeu:
         - Está bem... Eu me enganei pensando que ele estivesse aqui...
         Dizendo isso, Seu Osvaldo deu meia-volta e lentamente foi caminhando em retirada, refazendo quase o mesmo trajeto que percorrera na vinda.
         As crianças, percebendo que ele se afastava, voltaram às brincadeiras, às cambalhotas, e às risadas como se nada tivesse acontecido. Mário ficou meio ressabiado, mas logo esqueceu. E brincou... Como brincou...
         Seu Osvaldo, com olhos astutos de quem um dia já fora criança, ia caminhando lentamente e olhando de esguelha cada trouxinha de roupa colocada aqui e ali. E encontrou a trouxinha de Mário, com aquela velha camisa, surrada. Disfarçadamente, abaixou-se e rapidamente a recolheu. Estavam ali a camisa e o calção.
         Seu Osvaldo continuou a caminhada rumo à vila, abraçado à trouxinha de roupas do filho. Calmamente... E seguiu para casa.
         O sol estava baixando, e era chegada a hora de Mário cuidar da limpeza do corpo antes de vestir a roupa e seguir de volta para a vila. Era preciso estar em casa antes da escuridão da noite chegar.
         E todos foram saindo do açude.
         Mário se lavou inúmeras vezes, esfregava o couro cabeludo com as unhas até que ardesse. Esperava a água se acalmar, esperava a lama assentar-se no fundo, e mergulhava a cabeça para se livrar do barro. E esfregava cada curvinha das orelhas para remover o barro teimoso que insistia em não sair.
         Pronto. Agora, era só andar devagar até encontrar a árvore onde deixara as suas roupas. Caminhando devagar, evitaria que o barro fosse espirrado nas pernas e o corpo ficaria completamente seco com os últimos raios do sol.
         E assim foi...
         Os companheiros estavam quase todos vestidos, muitos já caminhavam de volta, e Mário ainda procurava as suas roupas. Olhava de um lado, de outro, e nada. Foi ficando intrigado e pôs-se, desesperado, a perguntar a um e a outro.
         Nada... Em poucos minutos virou uma verdadeira caçada às roupas de Mário. Inutilmente... Os mais medrosos puseram-se a correr rumo à vila. Não podiam se atrasar! Os companheiros mais chegados, calados, cansados da busca e imaginando o que havia acontecido, foram se dispersando.
         E Mário ficou ali, parado. E nu.
         Sabia exatamente o que o aguardava. O pai havia levado as suas roupas, e ele teria de enfrentá-lo. Nu...
         E, como chegar até lá? Como um menino de dez anos pode atravessar uma vila, assim, pelado?!
         Olhando o céu e percebendo que logo seria noite, juntando a vergonha de caminhar nu e o medo do escuro, Mário foi mudando os passos, vagarosamente.
         O trecho de volta, naquelas condições, tornava-se mais longo, infinitamente mais longo, e logo precisou apressar o passo. Assim, ele foi correndo de árvore em árvore, de moita em moita, para tentar esconder a sua nudez.
         Mário vazou cercas, cruzou pastos, plantações... Nu. 
         Ficou apavorado quando percebeu que estava perto da vila. Como passaria pelas casas, como enfrentaria as pessoas, assim, pelado?!
         E foi caminhando, aos trotes, aos pulos...
         O sol sumiu, a noite estava à porta. E o medo, também...
         Atravessou a primeira rua da vila, escondeu-se atrás de uma casa. Ainda bem que não existiam muros. Só cercas.
         E foi, já no escuro da noite, correndo de parede em parede, esgueirando-se por moitas de bananeiras, varando cercas, atravessando ruas na noite escura. E a cada espaço de tempo, respirava fundo, benzia-se e pedia a Deus para que aplacasse a ira do seu pai. Não escaparia da cinta, disso ele sabia. O que pedia a Deus é que as cintadas fossem menos iradas, mais suaves...
         Enfim, Mário chegou ao quintal de casa. Caramba, no varal não havia nenhum pano, nada para se cobrir!
         Tinha certeza de que o pai, a mãe e seus irmãos estavam lá dentro, esperando por ele. E sabia que seus irmãos iriam cair na risada quando ele entrasse pelado. Talvez não. O pai devia estar furioso e os irmãos não iriam ter coragem de rir! Duro ia ser aguentar a gozação, a zoeira dos próximos dias...     Mas não queria pensar no depois. Tinha de resolver o agora. E com a voz quase sumida, disse:
         - Pai!
         Nada, ninguém apareceu.
         - Paiêêê!!!
         Gritou tão forte que chegou a fechar os olhos.
         E o pai apareceu. Imenso. Parecia maior que a porta!
         E Mário ali, em pé, no escuro, e pelado. Nem queria olhar para a mão dele. A cinta deveria estar ali, saltitante, ávida pelo seu lombo, pronta para estalar...
         Mas não estava. Para sua surpresa e alívio, não estava.
         Mário caiu no choro. Choro de vergonha, de medo, de arrependimento, de tudo...
         E Seu Osvaldo entendeu. Não seria preciso castigar mais. Limitou-se a buscar uma toalha, cobrir o filho, abraçá-lo e dizer:
         - Mário, meu filho, que esta seja a última vez!
         E parece que foi...
                                                                       Regina Ruth Rincon Caires     
                                                



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