MOLEQUE
DIONÍSIO
Cabelos ruivos, olhinhos
claros, rosto cheio de sardas. Magérrimo, longilíneo, calção sempre a despencar
da cintura, roupa limpa, impecavelmente limpa. Pés no chão, infalivelmente.
Sapatos, só dentro da escola. Na ida e na volta, eram carregados na mão.
Quieto, monossilábico,
alheio, e absurdamente amado. Era intenso. Tudo durava instantes, mas esses instantes
eram vividos plenamente, sem qualquer medida. Sempre tirava sorrisos quando
aparecia, era o primeiro a ser escolhido na pelada da tarde. Pernas
irrequietas, bailarinas, deixavam todos arriados nos dribles. E finalizava bem.
Mesmo sem nunca ter sido o dono da bola, era respeitado. Era o craque. Não
importavam os pedregulhos a lhe fincarem os pés, a entrega era total. Duro era
manter a motivação dele até terminar a partida. Tinha paciência curta. Tudo
precisava ser rápido, nada de discussão em faltas, nada de bola chutada longe.
Eu gostava de andar ao seu
lado, se bem que ele, muitas vezes, parecia nem me notar. Raras vezes, dava um sorriso
de esguelha. Eu nem conversava, sabia que ele estava contando. Isso mesmo!
Contando! De cor, Dionísio sabia exatamente quantos passos havia da casa dele
até na escada da igreja, quantos passos havia da casa dele na escola, da escola
na praça, da praça no cemitério, da casa dele no cinema... E conferia todas as
vezes que fazia cada percurso. Gostava de ver o sorriso dele quando confirmava
cada distância. Não contava em voz alta, era tudo em silêncio. Muitas vezes eu
o pegava no meio de um trajeto e, aos trotes, por ser bem menor, ficava
tentando acertar o número de passos que estava na cabeça dele naquele momento.
Às vezes, eu começava no oitenta e um, no setenta e seis, no cento e quarenta e
sete, mas nunca acertei. Quando chegava ao destino, perguntava a ele o total. Eu
sempre errava feio.
Era ruim de escola. Sofrimento
ficar preso, na carteira, por tantas horas. As notas, sofríveis. Andou
repetindo alguns anos. Gostava de desenhar letras e números e, sem qualquer
instrumento de apoio, fazia tudo de maneira artística, milimétrica. Na vila,
quando chegava alguém para fazer um letreiro numa loja, numa venda, lá estava
ele na conferência. Ficava de longe, de onde podia olhar de muitas
perspectivas, esticava o pescoço, meneava a cabeça, franzia a testa, sorria.
Tudo de acordo com a aprovação ou não.
Era gago. Talvez por isso falasse
pouco. Não importava. Como eu gostava de ficar perto dele! Acho que por ser tão
espeloteada, sem freios, eu gostava daquele silêncio, da objetividade de
Dionísio, da maneira esquematizada de vida, o inverso do que eu era.
Ele tinha um olhar furtivo,
poucas vezes me fitou, mas, pelo perfil, eu conseguia enxergar a paciência ou a
falta dela, a tolerância ou a falta dela. Quando estava muito contrariado, no
limiar do estopim ser detonado, as veias do pescoço ficavam saltadas, salientes,
o rosto avermelhava, as mãos bailavam feito as pernas. Poucas vezes eu o vi
assim. Era cuidadoso, afastava-se quando percebia que estava chegando ao
limite.
A mãe dele era uma fonte de
doçura, ali havia a mais pura simbiose. O semblante dele irradiava-se quando a
encontrava. O pai era o único que deixava os olhos de Dionísio marejados. Sempre
bêbado, furioso, cambaleante. Era um homem excessivamente culto para a época,
mas aparentava ser infeliz.
Eu ficava encantada com a facilidade
com que Dionísio era amado. Tão calado, sem qualquer esforço e sem qualquer
preocupação com isso, era querido, não apenas tolerado.
Sei que também amava. Percebia isso.
Deixamos a vila. Eu,
primeiro. Depois de alguns anos, a família dele também partiu.
Da última vez que recebi
notícias, isso faz muitos anos, soube que ele ganhou a vida como letrista, sua
grande paixão. Hoje, não sei onde anda, e se ainda anda. Mas tenho a certeza de
que, onde quer que esteja, deve estar rodeado de amigos, de amores, sem a menor
preocupação, sem fazer o menor esforço. Como sempre foi.
Regina Ruth Rincon Caires
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