FOLHAS
DE OUTONO
O parque estava quase
vazio. As pessoas escolheram o aconchego entre paredes, rejeitando, de vez, o
vento frio da tarde e o sol tímido do final de outono. Poucas crianças
brincavam na caixa de areia, permanentemente observadas pelos olhos zelosos dos
adultos.
Agasalhado feito
esquimó, um menino veio em minha direção e despejou o balde com areia no banco
em que eu estava sentada. Não resisti em devolver um sorriso diante da alegria
daqueles olhos inocentes. Ajeitei-me mais à borda do banco. E ele, gostando da
brincadeira, repetiu o gracejo por inúmeras vezes. Nem percebi quando parou. Não
notei quando ele saiu do parque, e assustei-me quando vi o monte de areia ao
meu lado. Areia fina, tomada por folhas secas.
Enquanto meus dedos,
instintivamente, retiravam as folhas, meus pensamentos continuavam distantes,
atrelavam-se a lampejos de cenas pregressas. Encanto fugidio. Lembranças que
brotavam como feixes de luz cruzando a memória. Breves, mas articuladas. Permeadas,
reiteradamente, por aquele rosto sereno marcado por covinhas nascidas de um
sorriso ingênuo. Sim, ingênuo. Ou será que a pureza estava nos meus olhos?!
Não. Era real. Com o tempo, ficou ainda mais claro. Havia candura.
***
O moço chegou num
repente, trazia a prosa cantada das terras paranaenses. Falava de coisas que eu
não sabia, e encantava. Costumes diferentes, gostos diferentes. Era o último a
falar, ouvidos atentos. Talvez não compreendesse o modo de vida do meu povo,
talvez precisasse de um tempo. Ou também poderia estar encantado, querendo
ouvir.
Tínhamos exatamente a
mesma idade. E a adolescência efervescente irrompia pelos poros, pelos gestos.
Demandava controle. Ficávamos perdidos no turbilhão de hormônios e pecados, de
desejos e pudores, de vontades e vergonhas. Inexperiência pura, e medo. Muito
medo. Tudo levava a um drama de consciência que nos fazia perder o sono por
noites e noites, e, talvez por isso, flutuávamos por dias e dias. Ou nada
disso. O enlevo era magia castiça. A sedução instalava-se com todo o seu
domínio. Imperativa.
Entre as atividades do
dia, em qualquer sobra de tempo, estava eu a meditar sobre isso. Até conseguia
formar um pensamento quase palpável sobre como não perder o controle, e, mais
ainda, como conseguir dissimular a presença de tais sensações. Mas tudo ia por
terra quando via aquele rosto. Se eu deixava transparecer, não sei. Mas, dentro
de mim, não havia qualquer gerência. Instante seguinte, lá estava eu a flutuar.
Pertencíamos à mesma roda de amigos, frequentávamos
as mesmas reuniões dançantes. Gostávamos dos mesmos ritmos, das mesmas músicas.
Eram muitos “mesmos”, e era muito bom tê-lo por perto.
A reunião acontecia,
animada. Estávamos sentados lado a lado. Na vitrola, uma mistura de Beatles,
Roberto Carlos, Aretha, Taiguara, Marmalade, Mutantes, Bee Gees, Adamo, Elis,
Creedence, Rolling Stones... Muitos dançavam, alguns conversavam, outros
fumavam, bebiam. Muitos risos, muita vida. Num dado momento, estávamos apenas
os dois no sofá. E o tema de amor de Romeu e Julieta tomou conta do ambiente.
Num ímpeto, ele colocou a mão sobre a minha e me convidou para dançar. Foi um
susto tremendo, ele nunca dançava! Refeita, aceitei.
Quando nos dirigimos à
pista, aconteceu uma chuva de aplausos e risadas. Dispensável dizer que ficamos
avexados. Tive a irrefutável certeza de que eu não soube camuflar nem
sentimentos, nem sensações, nem coisa alguma.
E, naquele momento,
pude perceber o quanto ele era alto. Enlaçou-me com o braço e minha face ficou
colada em seu peito. Era morno. A mão grande e macia segurava a minha com
firmeza. E o rosto, encostado na minha testa, dava um aconchego não só no
corpo, aninhava a alma.
Terminada a música, ele
não deixou a minha mão. E dançamos mais uma, e mais uma, e mais uma... Juntos, encostados, sentindo o toque, o
perfume, o pulsar, a pele. Naquela noite, quase não falamos, mas nossos
olhares, cúmplices e envergonhados, disseram muito. E a noite acabou. Não houve
pedido de namoro, despedimo-nos ali mesmo.
Na volta para casa, eu
pairava. Nem sentia os pés tocarem o chão, tinha a sensação de que o corpo
estava envolto em bolhas. Nada de frio ou calor. Corpo e alma levitavam.
E foram mais três
semanas de cumplicidade, de aninho, de abraço, de dança, de feitiço, e o pedido
chegou. Somado a tudo que já havíamos experimentado, ficamos trêmulos. Era uma
tremura que alcançava até mesmo a nossa fala. E tudo aconteceu enquanto
dançávamos. O pedido, a resposta, o encanto, o abraço. A completude do momento.
Eu nem queria que a música acabasse. Queria que o momento fosse eterno.
Naquela noite, ele me
acompanhou até perto de casa. De mãos dadas. E na despedida, um abraço
interminável. Trêmulo.
A convivência tornou-se
transcendente. Os assuntos brotavam de todos os lados. Ele era encantado por
corrida de carro e conhecia as diversas escuderias. Apaixonado pela Lotus. De
início, eu não entendia nada, se bem que aprendi muito pouco sobre isso. Mas
guardei, por muitos anos e com muito carinho, uma pintura com colagem que ele
fez para mim. Ficou pregada na parede do meu quarto, e não lembro quando foi
que a tirei de lá.
Apreciava música
orquestrada. Presenteou-me com um vinil de Ray Conniff - “Turn Around Look At Me”. E eu também
aprendi a gostar.
Entendedor de números,
as ciências exatas o enfeitiçavam. E era excelente em humanas. Ele falava de
outros lugares, de outros horizontes, de outros sonhos. Falávamos de tudo, era
muito bom estarmos juntos.
Eu sonhava com o
primeiro beijo. Passava horas a imaginar como ele seria, como eu reagiria, o
que eu deveria fazer com as mãos, se teria que fechar os olhos ou mantê-los
abertos... Quase treinei diante do espelho, só não o fiz por puro recato. Ou
por achar que a cena ficaria patética e poderia quebrar o encanto.
E ele aconteceu. Numa
volta para casa, percebi que ele estava meio reticente, até mesmo no andar.
Vagaroso, mão mais quente que de costume, suada, suspiros fora de hora. Não vou
mentir. Pressenti que o momento do beijo estava bem perto. De repente, ele parou
diante de mim, colocou as mãos no meu pescoço, olhou-me demoradamente. Meio sem
jeito, abaixei os olhos e ele beijou minhas pálpebras. Segurou meu rosto com imensa
ternura e seus lábios desceram, tocando a minha boca. Um beijo suave. Ficamos
ali, abraçados, juntinhos, tremendo. E foi uma longa caminhada até chegarmos ao
portão de casa.
A partir daquela noite,
não era apenas prazeroso estarmos juntos, sentíamos necessidade do toque, do
abraço, do beijo. Ficamos reféns da cumplicidade de sonhos, das palavras de
amor sussurradas no ouvido.
E, naquela delicadeza
envolvente, sem dizer palavra, ele me mostrou que braços não apenas abraçavam.
Eles uniam. Unificavam. Suavemente, durante um beijo, ele tomou as minhas mãos
espalmadas no seu peito e as levou a enlaçarem o seu pescoço. De início, feito
bailarina, fiquei nas pontinhas dos pés. Mas, depois, com a força dos seus
braços contornando a minha cintura, ergueu-me do chão. E girava, lentamente.
Assim, de peitos acochados, colados num doce bailado, até as batidas de nossos
corações soavam uníssonas. De alma, éramos um só.
Contávamos as horas que
nos separavam, e o tempo voava quando estávamos juntos. Foram meses de puro
arrebatamento. Fascínio em cada encontro.
Um dia, chegou mais
calado que de costume. Os abraços eram mais apertados, o olhar, ainda que
carinhoso, trazia uma sombra diferente. Sempre muito franco, com voz muito
baixa, cuidadosamente comentou que, em breve, voltaria para a sua terra. O
trabalho sob os cuidados do seu pai, na empresa construtora, acabara, e haveria
a remoção para outra obra. Houve um silêncio estarrecedor. Sabíamos que o dia
da partida chegaria, mas, quando se é jovem, tempo sempre é sinônimo de infinitude.
Os últimos encontros
não perderam o encanto, mas havia medo. Estávamos inquietos. Jurávamos amor
eterno.
A despedida aconteceu
numa noite fria de julho. Na praça da matriz, deserta, ainda que absolutamente
agasalhados, tremíamos sem parar. Fiquei aninhada no seu peito por horas. Era
morno. As suas mãos macias não cansavam de acariciar o meu rosto. E foram
tantos beijos... Tantas promessas.
Não sabíamos, mas
aqueles foram os últimos abraços, os últimos toques.
Assim como veio,
partiu.
Era preciso, tinha de
ser. Ou não ser.
***
Tantas cartas, tantos
telegramas. Nenhuma resposta.
***
E a vida, esse
espetáculo mágico, essa engrenagem incessante que gira ao sabor do vento, que
não para nem mesmo em respeito à dor, que nos impulsiona e nos leva, independentemente
de consentimento, sempre nos surpreende com a imprevisibilidade. Talvez aí
esteja o feitiço de ser.
Com as redes sociais
derrubando fronteiras, encurtando distâncias, tudo está na janela, no alcance
da vontade. A opção de abri-la, geralmente, é buscada por curiosos, por
inconformados, por cavucadores de respostas. Sempre fui tudo isso. E procurei.
Encontrei página com o mesmo nome. E uma com o mesmo rosto. Bem mais velho, não
poderia ser diferente, mas as covinhas formadas pelo sorriso confirmaram que eu
havia encontrado aquele moço que lá, num tempo passado, encantava. Deixei uma
mensagem.
Um ano depois, recebi
resposta. E conversamos muito. Por escrito. Surpreendente como a amizade pode
ser perene. Distância e tempo não mudaram muitos dos nossos bons sentimentos.
Falamos sobre nossos pais, meus irmãos, amigos. Sobre datas, e, principalmente,
sobre os novos amores arrebanhados no hiato de quase meio século. Formou-se
engenheiro civil! Estava no terceiro casamento. Foi mais rápido que eu. E
falamos sobre o passado. Sentia-se responsável por não ter voltado. Imagine!
Éramos praticamente crianças, adolescentes despreparados. Tudo foi como deveria
ter sido.
Emocionei-me quando
disse que ainda guardava minhas cartas e meus telegramas. Que foram lidos e
relidos durante muito tempo, que gostava da maneira como eu escrevia. E ainda
tinha lembrança de que éramos do mesmo mês, do mesmo ano, do mesmo signo, do
mesmo temperamento.
Ri muito quando me
confessou que, quando me deixava no portão de casa, tarde da noite, voltava quase
correndo pelas ruas com medo de ser abduzido por um marciano, ser levado por um
disco voador. Realmente, a casa dele era bem distante e ficava numa área pouco
habitada. Além disso, as manchetes, à época, tratavam da chegada do homem à
lua, das presunções sobre habitantes em Marte. Fiquei imaginando a cena...
Ainda bem que ele não viu e nem ouviu, mas gargalhei por minutos. E sempre que
me lembro disso, eu não resisto e rio de novo.
Contou-me sobre a
aventura concretizada. Fazia pouco tempo, cruzara o continente de norte a sul,
pilotando uma Hayabusa, e sentia-se pleno, realizado. Deslumbrou-se com o
deserto do Atacama, apaixonou-se pelos Andes.
Falamos muito sobre a
inocência daquele tempo, mas não trocamos palavra sobre os nossos momentos. Se
acaso não os esqueceu, ele os trancou na memória, sem compartilhamento. Como
sempre, juntados às vivências amoitadas em algum canto que não mais será
remexido. Tudo tão particular. Visceral a ponto de não existir palavra capaz de
traduzir o arrepio que corre pelo corpo quando qualquer fagulha de lembrança é
revivida.
***
O som estridente da
sirene fez meu corpo estremecer. Hora de fechar o parque. Nas asas do devaneio,
o tempo voou e a noite não tardaria. A névoa cobriu as árvores e a visão ficou
turva. O vento forte levou as folhas secas que eu havia separado, redemoinhos
incontroláveis espalhavam-nas por toda parte. Imitando a vida, tudo procurava
se acomodar em algum canto.
Ergui a gola do
agasalho, o frio castigava.
Logo chegaria o
inverno. E, em seguida, a primavera. Mais uma...
Regina Ruth Rincon Caires
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