www.palavrasepontos.blogspot.com

textos

domingo, 22 de dezembro de 2019

FOLHAS DE OUTONO






FOLHAS DE OUTONO

O parque estava quase vazio. As pessoas escolheram o aconchego entre paredes, rejeitando, de vez, o vento frio da tarde e o sol tímido do final de outono. Poucas crianças brincavam na caixa de areia, permanentemente observadas pelos olhos zelosos dos adultos.
Agasalhado feito esquimó, um menino veio em minha direção e despejou o balde com areia no banco em que eu estava sentada. Não resisti em devolver um sorriso diante da alegria daqueles olhos inocentes. Ajeitei-me mais à borda do banco. E ele, gostando da brincadeira, repetiu o gracejo por inúmeras vezes. Nem percebi quando parou. Não notei quando ele saiu do parque, e assustei-me quando vi o monte de areia ao meu lado. Areia fina, tomada por folhas secas. 
Enquanto meus dedos, instintivamente, retiravam as folhas, meus pensamentos continuavam distantes, atrelavam-se a lampejos de cenas pregressas. Encanto fugidio. Lembranças que brotavam como feixes de luz cruzando a memória. Breves, mas articuladas. Permeadas, reiteradamente, por aquele rosto sereno marcado por covinhas nascidas de um sorriso ingênuo. Sim, ingênuo. Ou será que a pureza estava nos meus olhos?! Não. Era real. Com o tempo, ficou ainda mais claro. Havia candura.


***


O moço chegou num repente, trazia a prosa cantada das terras paranaenses. Falava de coisas que eu não sabia, e encantava. Costumes diferentes, gostos diferentes. Era o último a falar, ouvidos atentos. Talvez não compreendesse o modo de vida do meu povo, talvez precisasse de um tempo. Ou também poderia estar encantado, querendo ouvir.
Tínhamos exatamente a mesma idade. E a adolescência efervescente irrompia pelos poros, pelos gestos. Demandava controle. Ficávamos perdidos no turbilhão de hormônios e pecados, de desejos e pudores, de vontades e vergonhas. Inexperiência pura, e medo. Muito medo. Tudo levava a um drama de consciência que nos fazia perder o sono por noites e noites, e, talvez por isso, flutuávamos por dias e dias. Ou nada disso. O enlevo era magia castiça. A sedução instalava-se com todo o seu domínio. Imperativa.
Entre as atividades do dia, em qualquer sobra de tempo, estava eu a meditar sobre isso. Até conseguia formar um pensamento quase palpável sobre como não perder o controle, e, mais ainda, como conseguir dissimular a presença de tais sensações. Mas tudo ia por terra quando via aquele rosto. Se eu deixava transparecer, não sei. Mas, dentro de mim, não havia qualquer gerência. Instante seguinte, lá estava eu a flutuar.
 Pertencíamos à mesma roda de amigos, frequentávamos as mesmas reuniões dançantes. Gostávamos dos mesmos ritmos, das mesmas músicas. Eram muitos “mesmos”, e era muito bom tê-lo por perto.
A reunião acontecia, animada. Estávamos sentados lado a lado. Na vitrola, uma mistura de Beatles, Roberto Carlos, Aretha, Taiguara, Marmalade, Mutantes, Bee Gees, Adamo, Elis, Creedence, Rolling Stones... Muitos dançavam, alguns conversavam, outros fumavam, bebiam. Muitos risos, muita vida. Num dado momento, estávamos apenas os dois no sofá. E o tema de amor de Romeu e Julieta tomou conta do ambiente. Num ímpeto, ele colocou a mão sobre a minha e me convidou para dançar. Foi um susto tremendo, ele nunca dançava! Refeita, aceitei.
Quando nos dirigimos à pista, aconteceu uma chuva de aplausos e risadas. Dispensável dizer que ficamos avexados. Tive a irrefutável certeza de que eu não soube camuflar nem sentimentos, nem sensações, nem coisa alguma.
E, naquele momento, pude perceber o quanto ele era alto. Enlaçou-me com o braço e minha face ficou colada em seu peito. Era morno. A mão grande e macia segurava a minha com firmeza. E o rosto, encostado na minha testa, dava um aconchego não só no corpo, aninhava a alma.
Terminada a música, ele não deixou a minha mão. E dançamos mais uma, e mais uma, e mais uma...  Juntos, encostados, sentindo o toque, o perfume, o pulsar, a pele. Naquela noite, quase não falamos, mas nossos olhares, cúmplices e envergonhados, disseram muito. E a noite acabou. Não houve pedido de namoro, despedimo-nos ali mesmo.
Na volta para casa, eu pairava. Nem sentia os pés tocarem o chão, tinha a sensação de que o corpo estava envolto em bolhas. Nada de frio ou calor. Corpo e alma levitavam.
E foram mais três semanas de cumplicidade, de aninho, de abraço, de dança, de feitiço, e o pedido chegou. Somado a tudo que já havíamos experimentado, ficamos trêmulos. Era uma tremura que alcançava até mesmo a nossa fala. E tudo aconteceu enquanto dançávamos. O pedido, a resposta, o encanto, o abraço. A completude do momento. Eu nem queria que a música acabasse. Queria que o momento fosse eterno.
Naquela noite, ele me acompanhou até perto de casa. De mãos dadas. E na despedida, um abraço interminável. Trêmulo.
A convivência tornou-se transcendente. Os assuntos brotavam de todos os lados. Ele era encantado por corrida de carro e conhecia as diversas escuderias. Apaixonado pela Lotus. De início, eu não entendia nada, se bem que aprendi muito pouco sobre isso. Mas guardei, por muitos anos e com muito carinho, uma pintura com colagem que ele fez para mim. Ficou pregada na parede do meu quarto, e não lembro quando foi que a tirei de lá.
Apreciava música orquestrada. Presenteou-me com um vinil de Ray Conniff  - “Turn Around Look At Me”. E eu também aprendi a gostar.
Entendedor de números, as ciências exatas o enfeitiçavam. E era excelente em humanas. Ele falava de outros lugares, de outros horizontes, de outros sonhos. Falávamos de tudo, era muito bom estarmos juntos.
Eu sonhava com o primeiro beijo. Passava horas a imaginar como ele seria, como eu reagiria, o que eu deveria fazer com as mãos, se teria que fechar os olhos ou mantê-los abertos... Quase treinei diante do espelho, só não o fiz por puro recato. Ou por achar que a cena ficaria patética e poderia quebrar o encanto.
E ele aconteceu. Numa volta para casa, percebi que ele estava meio reticente, até mesmo no andar. Vagaroso, mão mais quente que de costume, suada, suspiros fora de hora. Não vou mentir. Pressenti que o momento do beijo estava bem perto. De repente, ele parou diante de mim, colocou as mãos no meu pescoço, olhou-me demoradamente. Meio sem jeito, abaixei os olhos e ele beijou minhas pálpebras. Segurou meu rosto com imensa ternura e seus lábios desceram, tocando a minha boca. Um beijo suave. Ficamos ali, abraçados, juntinhos, tremendo. E foi uma longa caminhada até chegarmos ao portão de casa.
A partir daquela noite, não era apenas prazeroso estarmos juntos, sentíamos necessidade do toque, do abraço, do beijo. Ficamos reféns da cumplicidade de sonhos, das palavras de amor sussurradas no ouvido.
E, naquela delicadeza envolvente, sem dizer palavra, ele me mostrou que braços não apenas abraçavam. Eles uniam. Unificavam. Suavemente, durante um beijo, ele tomou as minhas mãos espalmadas no seu peito e as levou a enlaçarem o seu pescoço. De início, feito bailarina, fiquei nas pontinhas dos pés. Mas, depois, com a força dos seus braços contornando a minha cintura, ergueu-me do chão. E girava, lentamente. Assim, de peitos acochados, colados num doce bailado, até as batidas de nossos corações soavam uníssonas. De alma, éramos um só.
Contávamos as horas que nos separavam, e o tempo voava quando estávamos juntos. Foram meses de puro arrebatamento. Fascínio em cada encontro.
Um dia, chegou mais calado que de costume. Os abraços eram mais apertados, o olhar, ainda que carinhoso, trazia uma sombra diferente. Sempre muito franco, com voz muito baixa, cuidadosamente comentou que, em breve, voltaria para a sua terra. O trabalho sob os cuidados do seu pai, na empresa construtora, acabara, e haveria a remoção para outra obra. Houve um silêncio estarrecedor. Sabíamos que o dia da partida chegaria, mas, quando se é jovem, tempo sempre é sinônimo de infinitude.
Os últimos encontros não perderam o encanto, mas havia medo. Estávamos inquietos. Jurávamos amor eterno.
A despedida aconteceu numa noite fria de julho. Na praça da matriz, deserta, ainda que absolutamente agasalhados, tremíamos sem parar. Fiquei aninhada no seu peito por horas. Era morno. As suas mãos macias não cansavam de acariciar o meu rosto. E foram tantos beijos... Tantas promessas.
Não sabíamos, mas aqueles foram os últimos abraços, os últimos toques.
Assim como veio, partiu.
Era preciso, tinha de ser. Ou não ser.


***


Tantas cartas, tantos telegramas. Nenhuma resposta.


***


E a vida, esse espetáculo mágico, essa engrenagem incessante que gira ao sabor do vento, que não para nem mesmo em respeito à dor, que nos impulsiona e nos leva, independentemente de consentimento, sempre nos surpreende com a imprevisibilidade. Talvez aí esteja o feitiço de ser. 
Com as redes sociais derrubando fronteiras, encurtando distâncias, tudo está na janela, no alcance da vontade. A opção de abri-la, geralmente, é buscada por curiosos, por inconformados, por cavucadores de respostas. Sempre fui tudo isso. E procurei. Encontrei página com o mesmo nome. E uma com o mesmo rosto. Bem mais velho, não poderia ser diferente, mas as covinhas formadas pelo sorriso confirmaram que eu havia encontrado aquele moço que lá, num tempo passado, encantava. Deixei uma mensagem.
Um ano depois, recebi resposta. E conversamos muito. Por escrito. Surpreendente como a amizade pode ser perene. Distância e tempo não mudaram muitos dos nossos bons sentimentos. Falamos sobre nossos pais, meus irmãos, amigos. Sobre datas, e, principalmente, sobre os novos amores arrebanhados no hiato de quase meio século. Formou-se engenheiro civil! Estava no terceiro casamento. Foi mais rápido que eu. E falamos sobre o passado. Sentia-se responsável por não ter voltado. Imagine! Éramos praticamente crianças, adolescentes despreparados. Tudo foi como deveria ter sido.
Emocionei-me quando disse que ainda guardava minhas cartas e meus telegramas. Que foram lidos e relidos durante muito tempo, que gostava da maneira como eu escrevia. E ainda tinha lembrança de que éramos do mesmo mês, do mesmo ano, do mesmo signo, do mesmo temperamento.
Ri muito quando me confessou que, quando me deixava no portão de casa, tarde da noite, voltava quase correndo pelas ruas com medo de ser abduzido por um marciano, ser levado por um disco voador. Realmente, a casa dele era bem distante e ficava numa área pouco habitada. Além disso, as manchetes, à época, tratavam da chegada do homem à lua, das presunções sobre habitantes em Marte. Fiquei imaginando a cena... Ainda bem que ele não viu e nem ouviu, mas gargalhei por minutos. E sempre que me lembro disso, eu não resisto e rio de novo.
Contou-me sobre a aventura concretizada. Fazia pouco tempo, cruzara o continente de norte a sul, pilotando uma Hayabusa, e sentia-se pleno, realizado. Deslumbrou-se com o deserto do Atacama, apaixonou-se pelos Andes.
Falamos muito sobre a inocência daquele tempo, mas não trocamos palavra sobre os nossos momentos. Se acaso não os esqueceu, ele os trancou na memória, sem compartilhamento. Como sempre, juntados às vivências amoitadas em algum canto que não mais será remexido. Tudo tão particular. Visceral a ponto de não existir palavra capaz de traduzir o arrepio que corre pelo corpo quando qualquer fagulha de lembrança é revivida.


***


O som estridente da sirene fez meu corpo estremecer. Hora de fechar o parque. Nas asas do devaneio, o tempo voou e a noite não tardaria. A névoa cobriu as árvores e a visão ficou turva. O vento forte levou as folhas secas que eu havia separado, redemoinhos incontroláveis espalhavam-nas por toda parte. Imitando a vida, tudo procurava se acomodar em algum canto.
Ergui a gola do agasalho, o frio castigava.
Logo chegaria o inverno. E, em seguida, a primavera. Mais uma...
  



Regina Ruth Rincon Caires

Nenhum comentário:

Postar um comentário