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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O PEDIDO DE NATAL









O PEDIDO DE NATAL

         Na fila do correio, a menina aguardava. Na sua vez, deu a carta ao atendente. Era para o Papai Noel. 
         - O prazo já acabou. – diz o servidor.
         Desapontada, olhou para a mãe. Saíram caladas.
         Na escada, um senhor a abordou:
         - Sou mecânico, tô indo consertar o trenó do velhinho. Quer que eu leve a carta? 

         ...
        
         No Natal, a boneca chegou.


Regina Ruth Rincon Caires
Araçatuba – Brasil


domingo, 22 de dezembro de 2019

HONORINHA








HONORINHA

Chegaram quietos. Traziam nas vestes surradas a poeira da estrada vencida na carroceria do velho caminhão. Foram despejados ali, no começo da vila. As matulas dos pertences, jogadas à beira da rua, no chão de pedregulhos. Grandes trouxas, onde os nós amarravam o conseguido da vida.
Eram três homens, uma velha e duas crianças. Marrons. Além da tez, a poeira os tornara assim, cor da terra. Olhavam em todas as direções, olhos semicerrados diante da luminosidade impiedosa do sol. E eram olhados. Da porta do armazém, olhos curiosos e bocas incontroladas tentavam desvendar a trajetória daqueles inesperados forasteiros. Material farto para as conversas de muitos dias.
De todos, um dos homens se destacava pela altura. Mesmo sujo, dava para ver que, além de mais alto, era mais claro. Tinha braços longos, ombros largos, farta cabeleira, barba por fazer. E foi ele que, num meneio de cabeça, indicou a direção a ser seguida. Instalaram-se no vão de um terreno bem perto de onde estavam, sob a copa de duas mangueiras imensas, entrelaçadas. Cada homem arrastava duas matulas. A velha, sem medir força, arrastou a maior delas. E, para as crianças, sobraram as pequenas.
Na mesma rapidez dos movimentos, os três homens deixaram os fardos no pé da mangueira, sob os cuidados da velha, e seguiram em direção da baixada da vila. Não demoraram a voltar trazendo pedaços de tijolos, gravetos. O mais novo, depois de trocar uma prosa com a velha, rumou para o armazém. Foi em busca de arroz e linguiça.
A velha não demorou em pedir licença na casa mais próxima e usar da água do poço. Em instantes, o fogão de chão estava montado, os gravetos crepitavam e as velhas panelas dançavam nas mãos calejadas da velha senhora.
Avezados a acampamentos, os homens, numa debandada harmoniosa, ausentaram-se por um bom tempo. A tarde já havia entrado quando o chiado dos feixes de folhas de bacuri, amarrados às cinturas dos homens e varrendo os pedregulhos, fez com que as cabeças dos curiosos se voltassem para os forasteiros. Também traziam, nos ombros, alguns galhos grossos de árvore, muitos deles terminados em forquilhas generosas. Tudo foi ajeitado no chão e, famintos, rodearam o fogão onde o banquete os aguardava.
Saciados, conversando em voz baixa, começaram a medir e a delimitar, com passos, os lugares onde seriam fincados os troncos. E o serviço, com pouca prosa e muito assobio, ia dando forma ao esqueleto da cabana. Já ia escuro quando todas as forquilhas estavam fixadas. Retiradas as redes das trouxas, cinco delas foram dispostas em ziguezague nas fendas das forquilhas. As crianças dormiam juntas. A menina, de mais ou menos sete anos, e o moleque, que não passava dos cinco, eram mirradinhos, caladinhos, ligeiros, de olhos grandes e assustados.
Foi só o tempo de silenciar a fome e logo se ajeitaram nas redes, exaustos. E, mesmo ao relento, o sono veio feito dádiva.
Antes do raiar do dia, a velha preparou o café, os homens se ajeitaram e saíram, e as crianças dormiam como minhocas entrelaçadas. Acordaram com o barulho dos bambus sendo pregados e trançados na volta da cabana. Como num passe de mágica, as folhas de bacuri forraram o teto e as paredes, e a cabana estava terminada. Sem janelas, com apenas uma entrada. E todos sorriram. A próxima noite não seria mais ao relento.
Na nova morada, naquele resto de dia, foram esticados varais, montado um batedor de roupas e um cercadinho onde os adultos se lavariam. Um velho tambor foi cortado ao meio. Metade foi colocada ao lado do batedor, seria a tina para lavar as roupas, e a outra metade serviria para reservar água e banhar as crianças.
A vida tomou rumo. Os homens foram conseguindo trabalho nas roças, nas plantações, nas colheitas, e aos poucos, os forasteiros iam sendo conhecidos. Dos homens, o mais alto era genro da velha, pai das crianças. Os outros dois homens eram irmãos, filhos da velha senhora, e a mãe das crianças, sua única filha, morrera no parto do menino. Tirante o pai das crianças, eram índios, e vieram de muito longe. Talvez por isso, ninguém se assustava com o costume da velha que, no dia a dia, ficava sem qualquer pano a lhe cobrir os seios. Usava sempre saia rodada que chegava aos tornozelos, e na parte de cima, nada, absolutamente nada. Não saía às ruas, ficava o tempo todo na lida da casa e das roupas. Miúda, pele extremamente enrugada, cabelos compridos, ralos, pouco grisalhos, amarrados na altura da nuca. Cigarro de palha no canto da boca, quase sempre apagado. Tetas caídas, pelanca pura. Triste figura. Mas tinha olhar manso, amoroso.
Levei um tempo a me aproximar. Durante dias, acho que meses, fiquei de longe, mas meus olhos não perdiam um movimento. Só atravessei a rua e finquei os pés no terreno quando a menina sorriu. Eu era miúda, mas ela era ainda mais. De perto, magricela e de uma palidez esverdeada, era a fragilidade viva. Era um azougue, habilidade simiesca, subia nas mangueiras como se tivesse garras. Eu era uma criança que só não deixava a família na corda bamba quando dormia, mas ela era, anos luz, mais endiabrada que eu. Juntas, nem preciso falar.
Foi, então, que fiquei sabendo do nome de Honorinha. Ficamos parceiras. De brincadeiras, de risadas sem medida, de silêncios. Ela era calada, serelepe calada. Eu falava pelos cotovelos, nem sei se ela ouvia. A jornada começava cedo, e só era interrompida no almoço, na merenda e na hora de dormir. Nunca comi lá, e ela nunca foi comer em minha casa. E não havia despedida, saía de fininho e chegava de fininho.
E o novo ano começou. Entrei na escola, mas Honorinha, não. Não estudava e nem tinha tino para isso. Brincadeira de desenhar ou escrever na terra com pauzinho, nem pensar! Era avessa!
Então, a nossa parceria resumia-se às tardes. Menos tempo, mais intensidade. Ainda bem que a avó nunca permitiu que ela se afastasse do espaço do terreno. A velha nunca ergueu a voz, o entendimento era velado, os olhos falavam. A maior parte do tempo, passávamos na copa das mangueiras.
Uma tarde, Honorinha entrou na tina do banho. Eu estava no canto do terreno e empurrava com os pés, as pedras, os cacos de louça, os caroços secos de manga, os gravetinhos, enfim, nossas bugigangas das brincadeiras. E ouvi um grito. Olhei para Honorinha e ela estava escorada pela avó, toda cheia de sangue. Havia escorregado no barro ao sair da tina, e fizera um corte profundo na altura da coxa, quase na virilha. Fiquei apavorada, sai correndo em direção de casa. A noite foi sofrida, e na manhã, nem tinha vontade de ir à escola. Mas fui...
Quando cheguei ao terreno, tudo estava quieto, Honorinha não me esperava. Estava dentro da cabana, deitada na rede, com a perna toda enfaixada. Seu João da Botica havia feito o atendimento, e ela precisava ficar em repouso. Eu fiquei ali, sentada na entrada da cabana. Ela dormia. E no outro dia foi assim, e no outro, também. Ela não estava bem, febril, seria levada para outra cidade, para um hospital.
E foi assim. Uma tarde, quando cheguei, só os homens com o menino estavam lá. Honorinha e a avó foram levadas e voltariam assim que ela melhorasse. Eu continuei na espera. Bastava chegar da escola, mal engolia a comida, corria lá para conferir.
Depois de muitos dias, numa tarde percebi que não havia mais roupas no varal, não havia varal, nenhuma panela no fogão. Fui até à porta da cabana, estava vazia. Sem redes, sem roupas.
Partiram. Simples assim. E eu nunca soube o que aconteceu. Para onde seguiram, como Honorinha ficou... Nenhuma notícia, nunca mais.
Até hoje procuro por ela. Deve estar em algum lugar. Será que estudou? Casou? Teve filhos? Será que morreu?!
O que mais me intriga é que ninguém tem qualquer lembrança dela. Nem minha mãe, nem meus irmãos, nem os moradores da vila. Ninguém, absolutamente ninguém diz que conheceu a menina.
Interessante como o menino nunca participou das brincadeiras! Não tenho lembrança de conversar com ele, de ter ouvido a voz dele, o choro! Tenho lembrança apenas do rostinho miúdo.
Honorinha... Será que você realmente existiu?!


Regina Ruth Rincon Caires

NOVEMBRO OU NOVO ALENTO?!







NOVEMBRO OU NOVO ALENTO?!

         Novembro corre solto...
         Mês de véspera, sabor de expectativa...
        O fim do ano é profundamente carismático. Consegue, no simples acontecer, tocar fundo o ânimo das pessoas. Se não pelas festas natalinas, que para muitos são extremamente tristes, depressivas, reminiscentes, então pela “dobra” do salário, afinal o décimo terceiro está a caminho! Contudo, o que mais importa neste fascínio enigmático que envolve o fim do ano é a promessa, o empenho, é o propósito do recomeçar.
         Impressionante como se desencadeia, dentro de cada ser, a esperança do novo, da nova chance, da retomada! As ideias, insistentemente, vão-se sobrepondo, os planos se avolumam, a vida ganha um novo significado.
         Nos miolos, fica uma dança do novo emprego, da nova casa, da nova escola, do novo carro... Fundamental e imprescindível é o NOVO, o sonho, o desejado, o desconhecido. Curioso o espírito humano! Aí a lucidez fica como que enevoada. Não chega a ser a perda da razão, ela só se torna um pouco diminuída, tamanha a força do projeto. Isso mesmo! É um projeto, uma intenção de experimentar o novo. E, com licença, que sensação prazerosa! Dar as costas para o maçante, para o enfadonho, e vislumbrar adiante a perspectiva, a simples esperança do acerto, do “tirar o pé do lodo”. Caramba! Não há nada mais revigorante...
         Pensar que pode não dar certo?! Pra quê? Quem desperta ou quer despertar completamente a razão num momento como este? O importante é não pensar. Isso já foi feito o ano todo. Não é hora de pensar. É hora de planejar, arquitetar, elaborar... É diferente! É hora de sonhar, é isso.
         Um novo ano para o espírito é feito um novo guarda-roupa para o corpo. De repente, é como se cada um tirasse tudo das gavetas, velhas roupas surradas, desestimulantes, puídas, e as trocasse por tudo novo, vibrante, tudo feito sob medida, cheirando à loja. Dá um novo alento. No mínimo, é incitante! 
         E o fim do ano chega...
         Dezembro é feito pássaro!
         Ano novo...
         Os dias simplesmente acontecem. Sucessivos, inevitavelmente, e lânguidos, inexplicavelmente.
         Aos poucos a expectativa, antes afoita, vai-se amainando, os projetos concretizando-se, ou não... O tornar real é diferente, racional demais! Talvez por isso quebre o encanto. Existe uma serenidade de ânimo tal, que chega a ser conflitante com a avidez de antes.
         Os meses passam. Maçantes, enfadonhos, arrastados...
         Ainda bem que novembro não tarda a chegar!


                                                                    Regina Ruth Rincon Caires                                                                
                                                                                             
        
        
        

IDADE DA INOCÊNCIA







IDADE DA INOCÊNCIA


Com apenas três aninhos, a netinha pergunta:

- Vovó, quantos anos você tem?

- 62...

- Nossa! É muito caro, né?


      

                                 Regina Ruth Rincon Caires



ETERNO PESAR







ETERNO PESAR

No silêncio da madrugada, da outra casa, parede-meia, eu conseguia ouvir desaforos sussurrados, choro abafado, gemidos de dor. E isso acontecia recorrentemente. No claro do dia, eu via um casal normal, afora o olhar esquivo da mulher. Reticente, evitei a aproximação. Era o comportamento costumeiro, não cabia a invasão de privacidade. O relacionamento, unidade blindada, pertencia apenas aos envolvidos. E, da crueldade velada, da violência reiterada, nunca ouvi pedido de socorro. Apenas o estampido.  


 Regina Euth Rincon Caires

DA DOAÇÃO À AFLIÇÃO




DA DOAÇÃO À AFLIÇÃO

Em meados da década de 1970, trabalhávamos juntas. Éramos muito parecidas fisicamente. Franzinas, magérrimas, elétricas feito serelepes, com grande deficiência visual minimizada por grossas lentes adaptadas nos óculos enormes, pesados. A dissemelhança ficava evidente nos traços orientais de Yoshiko. Trazia as palmas das mãos sempre amarelas, de um amarelo-abóbora, estranho. Muito tempo depois, fiquei sabendo que era por ingestão excessiva de cenoura.
Naqueles tempos, a possibilidade de doação de sangue ou de órgãos era quase desconhecida. Pouco se falava, não havia qualquer divulgação.  De repente, alguns voluntários mais alguns funcionários da saúde, e mais a diretoria da Santa Casa de Misericórdia, iniciaram uma campanha na cidade visando arrebanhar doadores de córneas. Imaginando que, por sempre ter enxergado muito pouco, nunca poderia doar os olhos, não procurei me inteirar do assunto. Não sabia da independência da córnea, no contexto.
Numa manhã, antes do início do atendimento ao público, a gerente permitiu uma reunião na qual alguns servidores da saúde explicaram a razão da campanha e solicitaram que fizéssemos os nossos cadastros de doadores. Tudo muito embrionário, com formulários a serem preenchidos, elementarmente confeccionados em mimeógrafos, letras roxas, borradas. No rodapé da página havia um espaço a ser preenchido com o nome de cada um, e com a inscrição “DOADOR DE CÓRNEAS”. Fora dada a orientação para que essa parte fosse recortada e colocada na carteira de uso diário. Em caso de ocorrência de morte, as pessoas saberiam que éramos doadores. Incipiência do movimento. As propostas/cadastros foram distribuídas para que fossem preenchidas em outro horário, com a promessa de que na manhã seguinte elas seriam recolhidas pela gerente e repassadas à equipe responsável pela coleta. Preenchi o meu formulário naquela noite. Recortei a tirinha do rodapé que trazia o meu nome e a guardei na carteira. Na manhã seguinte todos os cadastros foram repassados à gerente. Acho que todos entregaram. Não ouvi qualquer comentário que contrariasse essa intenção. Afinal, éramos todos muito jovens, a morte era uma realidade arredada... Depois disso, confesso que pensei que fosse um ciclo concluído. Pensei... Nos dias seguintes, o trabalho normal, a correria de sempre...
Percebi Yoshiko mais calada. Semblante abatido, aparentava estar mais magra, se é que poderia... Já não estava tão ágil nos movimentos, e muitas vezes mostrava sentir tonturas. Trabalhando no guichê ao lado, eu não poderia deixar de notar as mudanças. No horário do lanche procurei falar com ela. Nem precisei alongar o assunto, logo ela caiu no choro. Estava fragilizada, amedrontada. E de pronto me falou que tudo começara no dia em que ela entregou o cadastro de doadora de córneas. Desde então, não conseguia dormir, perdera totalmente o apetite, sentia pavor da morte. E que a morte se tornara um pensamento recorrente. Perguntei a ela o que queria fazer. Ela não titubeou. Queria retirar o cadastro de doação. Não queria ser doadora de córneas. Arrependera-se.
Diante da aflição de Yoshiko, prometi a ela que cuidaria disso.  De imediato, liguei para o serviço de saúde e perguntei onde estavam arquivados os formulários já preenchidos dos doadores de córneas. Recebi a informação de que todos os que foram recolhidos nos diversos locais da cidade, estavam acondicionados em caixas empilhadas em uma sala do posto de saúde, e que tudo seria organizado manualmente e arquivado em ordem alfabética tão logo terminasse a campanha. Ela, rapidamente me entregou a tirinha recortada do formulário que havia preenchido para que eu pudesse apresentá-la no serviço de saúde. E foram dias, semanas de espera. Yoshiko, apesar de um pouco mais aliviada porque dividira a preocupação comigo, continuava abatida. Liguei inúmeras vezes para saber se o serviço de arquivamento havia terminado, e nada... Completada a terceira semana, fui pessoalmente ao serviço de saúde. A sala onde estavam as caixas era um caos deflagrado... Pilhas e pilhas de folhas esperando a organização alfabética, os arquivos ainda vazios. No trabalho havia apenas uma voluntária. Desarvorada, perdida... Ofereci ajuda para o final de semana, e ela agradeceu com um largo sorriso.
Combinei com Yoshiko, e no sábado de manhãzinha mergulhamos no trabalho do arquivo, juntamente com outras voluntárias. Se o material ainda estivesse em caixas, a busca seria mais fácil, poderíamos achar os formulários da nossa empresa. Mas tudo havia sido misturado. Eu me preocupava mais em colocar em ordem alfabética, mas Yoshiko repassava as folhas numa pesquisa voraz. Fazia pena... E assim foi o sábado. No domingo, começamos ainda mais cedo. Yoshiko, um pouco mais desgastada pelo insucesso da procura do dia anterior, tinha um olhar meio dispersivo, incrédulo. Falávamos pouco durante a organização. Eu até rezava. Achar aquele papel era o propósito que traria a paz de Yoshiko. Podia parecer bobagem, mas não era. Para Yoshiko era vital. Começava a escurecer, final de outono, e aproximava a hora de encerrar o trabalho. Fomos guardar no arquivo o último lote separado no dia, e Yoshiko pegou o final da pilha, as letras finais do alfabeto. Passados alguns minutos, ela soltou um grito: “ACHEI!!!”.
Nem acreditei! Estava ali, nos formulários já arquivados, a folha com o nome dela. Ela ria, chorava, pulava... Feliz, feliz como uma criança que ganhou o presente sonhado. Que alívio! Hoje somos idosas. A vida nos levou por destinos diferentes, mas continuamos aqui, vivas, firmes. Será que ela mudou de ideia?! Nem ouso perguntar... A doação, igual a toda e qualquer decisão, deve ser fruto de uma análise profunda, de um amadurecimento de ideia, de meditação, de aceitação, de discussão. Há tempo para tudo. Da vida nasce vida, da morte doamos vida...

Regina Ruth Rincon Caires


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DE HERÓI A VILÃO




DE HERÓI A VILÃO

            Chuvas de novembro.
         A natureza é reanimada. Gotas abundantes e contínuas avolumam-se, formam uma grande tempestade. As pessoas têm até dificuldade para locomoverem-se a fim de realizar seus compromissos mais banais.
         E com isso, o movimento da agência bancária é mínimo. Raramente aparece um ou outro cliente, molhado, encharcado, e nervoso ainda por cima! Sobra tempo até para tomar tenência de prosas corriqueiras entre aqueles que estão por perto, esperando uma trégua da chuva.
         A tarde fica maçante, o ar morno, o corpo sonolento...
         O zunido do rádio, provocado pela interferência dos raios, dos relâmpagos na transmissão, chega a irritar.
         Melhor mesmo é desligá-lo.
         Aliás, ia fazer isso de qualquer maneira. Interessei-me pela conversa iniciada entre o vigilante e um desconhecido.
- Engraçado! O Natal está chegando e nem parece! – diz o desconhecido.
- É, o negócio tá feio! Essa falta de dinheiro acaba com qualquer festa... – responde o vigilante.
- Não, seu guarda! Não é a falta de dinheiro, não! A graça está acabando porque tudo virou costume. Tudo aquilo que só era feito nas festas, agora acontece em qualquer dia... Pensa bem.  Antigamente a gente esperava o Natal como uma criança espera por um presente. No Natal a gente tomava guaraná, comia leitoa, frango assado, panetone, tinha sempre uma garrafa de vinho para ser dividida com toda a família. Hoje não! Por mais difícil que pareça a situação, as crianças sempre têm refrigerante! Não importa de que jeito se consegue comprar, não importa... O que era um acontecimento virou costume, e nada novo foi criado... – fala o desconhecido.
O vigilante ouve atentamente, com ar compenetrado. Cada palavra dita parece explicar-lhe um mundo de coisas, muda conceito. De repente, a situação econômica não é tão penosa assim! Na verdade as pessoas trocaram os valores das coisas. Interessante! O vigilante parece aliviado...
Quando percebe que o desconhecido deu uma pausa na conversa, e estimulado a continuar o assunto, chega-se mais para perto dele. Afinal, aquele homem é um sábio! Pensa profundamente, analisa. E aí está a sabedoria. Está no fato de esmiuçar os acontecimentos corriqueiros, no tentar compreender o simplismo da vida.
- O senhor tem toda a razão!  O costume é que mudou muito. Os dias ficaram iguais. É isso mesmo! Eu lembro bem de que tempos atrás, pela mesa se conhecia o domingo. Era frango e macarronada. As galinhas até se arrepiavam quando ia chegando o final de semana!
- É, seu guarda! É isso mesmo! E mais... Na verdade a vida ficou mais atropelada, mais apertada, mais compromissada, não vou negar. Mas, o que mais tirou o encanto das coisas não foi a escassez do dinheiro. O que deixa a pessoa amolada é a desesperança. Essa não tem jeito de mudar. E vou falar uma coisa pro senhor: ainda que hoje nós, pobres, de repente ficássemos cheios de dinheiro, essa amargura do desconforto, essa desilusão entranhada já deixaram marcas profundas, e nada poderia ser mudado. A nossa cabeça, o nosso juízo não é feito de papel onde, com uma borracha apenas, tudo se apaga. Seríamos ricos desiludidos, pode ter certeza! A ilusão se foi, companheiro. É isso... Mas, deixa pra lá... A chuva está mais branda, já dá pra circular. Até logo, seu guarda, e tenha um feliz Natal!
O vigilante permanece imóvel, indignado.
Perplexo, continua com os olhos fixos no desconhecido que se afasta rumo ao portão.          Tenho a impressão de que está querendo não acreditar no que ouviu. Sente necessidade de não acreditar!
Sujeitinho petulante! Parece o dono da verdade! Com que direito chega aqui e coloca a realidade nua e crua diante dos olhos alheios, dando um nó nos pensamentos e deixando na garganta esse sabor amargo de aflição?!
Atônito, o vigilante ainda olha o portão onde a figura do desconhecido desaparece. Leva tempo para recompor-se. Ergue o boné, coça a cabeça como que para espantar os pensamentos. Vira a cabeça para o meu lado, e fica ainda mais encabulado quando percebe que assisti a tudo.
Tento disfarçar o olhar, mas... Tarde demais. O olhar é feito palavra, não tem volta.
Tenho vontade de puxar prosa, tentar animá-lo um pouco. Mas, para quê? De que adiantaria isso agora? Que remédio?!
Amanhã é outro dia, e ele estará refeito.
É preciso relevar, e tocar adiante.

                                                     Regina Ruth Rincon Caires