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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O PEDIDO DE NATAL









O PEDIDO DE NATAL

         Na fila do correio, a menina aguardava. Na sua vez, deu a carta ao atendente. Era para o Papai Noel. 
         - O prazo já acabou. – diz o servidor.
         Desapontada, olhou para a mãe. Saíram caladas.
         Na escada, um senhor a abordou:
         - Sou mecânico, tô indo consertar o trenó do velhinho. Quer que eu leve a carta? 

         ...
        
         No Natal, a boneca chegou.


Regina Ruth Rincon Caires
Araçatuba – Brasil


domingo, 22 de dezembro de 2019

HONORINHA








HONORINHA

Chegaram quietos. Traziam nas vestes surradas a poeira da estrada vencida na carroceria do velho caminhão. Foram despejados ali, no começo da vila. As matulas dos pertences, jogadas à beira da rua, no chão de pedregulhos. Grandes trouxas, onde os nós amarravam o conseguido da vida.
Eram três homens, uma velha e duas crianças. Marrons. Além da tez, a poeira os tornara assim, cor da terra. Olhavam em todas as direções, olhos semicerrados diante da luminosidade impiedosa do sol. E eram olhados. Da porta do armazém, olhos curiosos e bocas incontroladas tentavam desvendar a trajetória daqueles inesperados forasteiros. Material farto para as conversas de muitos dias.
De todos, um dos homens se destacava pela altura. Mesmo sujo, dava para ver que, além de mais alto, era mais claro. Tinha braços longos, ombros largos, farta cabeleira, barba por fazer. E foi ele que, num meneio de cabeça, indicou a direção a ser seguida. Instalaram-se no vão de um terreno bem perto de onde estavam, sob a copa de duas mangueiras imensas, entrelaçadas. Cada homem arrastava duas matulas. A velha, sem medir força, arrastou a maior delas. E, para as crianças, sobraram as pequenas.
Na mesma rapidez dos movimentos, os três homens deixaram os fardos no pé da mangueira, sob os cuidados da velha, e seguiram em direção da baixada da vila. Não demoraram a voltar trazendo pedaços de tijolos, gravetos. O mais novo, depois de trocar uma prosa com a velha, rumou para o armazém. Foi em busca de arroz e linguiça.
A velha não demorou em pedir licença na casa mais próxima e usar da água do poço. Em instantes, o fogão de chão estava montado, os gravetos crepitavam e as velhas panelas dançavam nas mãos calejadas da velha senhora.
Avezados a acampamentos, os homens, numa debandada harmoniosa, ausentaram-se por um bom tempo. A tarde já havia entrado quando o chiado dos feixes de folhas de bacuri, amarrados às cinturas dos homens e varrendo os pedregulhos, fez com que as cabeças dos curiosos se voltassem para os forasteiros. Também traziam, nos ombros, alguns galhos grossos de árvore, muitos deles terminados em forquilhas generosas. Tudo foi ajeitado no chão e, famintos, rodearam o fogão onde o banquete os aguardava.
Saciados, conversando em voz baixa, começaram a medir e a delimitar, com passos, os lugares onde seriam fincados os troncos. E o serviço, com pouca prosa e muito assobio, ia dando forma ao esqueleto da cabana. Já ia escuro quando todas as forquilhas estavam fixadas. Retiradas as redes das trouxas, cinco delas foram dispostas em ziguezague nas fendas das forquilhas. As crianças dormiam juntas. A menina, de mais ou menos sete anos, e o moleque, que não passava dos cinco, eram mirradinhos, caladinhos, ligeiros, de olhos grandes e assustados.
Foi só o tempo de silenciar a fome e logo se ajeitaram nas redes, exaustos. E, mesmo ao relento, o sono veio feito dádiva.
Antes do raiar do dia, a velha preparou o café, os homens se ajeitaram e saíram, e as crianças dormiam como minhocas entrelaçadas. Acordaram com o barulho dos bambus sendo pregados e trançados na volta da cabana. Como num passe de mágica, as folhas de bacuri forraram o teto e as paredes, e a cabana estava terminada. Sem janelas, com apenas uma entrada. E todos sorriram. A próxima noite não seria mais ao relento.
Na nova morada, naquele resto de dia, foram esticados varais, montado um batedor de roupas e um cercadinho onde os adultos se lavariam. Um velho tambor foi cortado ao meio. Metade foi colocada ao lado do batedor, seria a tina para lavar as roupas, e a outra metade serviria para reservar água e banhar as crianças.
A vida tomou rumo. Os homens foram conseguindo trabalho nas roças, nas plantações, nas colheitas, e aos poucos, os forasteiros iam sendo conhecidos. Dos homens, o mais alto era genro da velha, pai das crianças. Os outros dois homens eram irmãos, filhos da velha senhora, e a mãe das crianças, sua única filha, morrera no parto do menino. Tirante o pai das crianças, eram índios, e vieram de muito longe. Talvez por isso, ninguém se assustava com o costume da velha que, no dia a dia, ficava sem qualquer pano a lhe cobrir os seios. Usava sempre saia rodada que chegava aos tornozelos, e na parte de cima, nada, absolutamente nada. Não saía às ruas, ficava o tempo todo na lida da casa e das roupas. Miúda, pele extremamente enrugada, cabelos compridos, ralos, pouco grisalhos, amarrados na altura da nuca. Cigarro de palha no canto da boca, quase sempre apagado. Tetas caídas, pelanca pura. Triste figura. Mas tinha olhar manso, amoroso.
Levei um tempo a me aproximar. Durante dias, acho que meses, fiquei de longe, mas meus olhos não perdiam um movimento. Só atravessei a rua e finquei os pés no terreno quando a menina sorriu. Eu era miúda, mas ela era ainda mais. De perto, magricela e de uma palidez esverdeada, era a fragilidade viva. Era um azougue, habilidade simiesca, subia nas mangueiras como se tivesse garras. Eu era uma criança que só não deixava a família na corda bamba quando dormia, mas ela era, anos luz, mais endiabrada que eu. Juntas, nem preciso falar.
Foi, então, que fiquei sabendo do nome de Honorinha. Ficamos parceiras. De brincadeiras, de risadas sem medida, de silêncios. Ela era calada, serelepe calada. Eu falava pelos cotovelos, nem sei se ela ouvia. A jornada começava cedo, e só era interrompida no almoço, na merenda e na hora de dormir. Nunca comi lá, e ela nunca foi comer em minha casa. E não havia despedida, saía de fininho e chegava de fininho.
E o novo ano começou. Entrei na escola, mas Honorinha, não. Não estudava e nem tinha tino para isso. Brincadeira de desenhar ou escrever na terra com pauzinho, nem pensar! Era avessa!
Então, a nossa parceria resumia-se às tardes. Menos tempo, mais intensidade. Ainda bem que a avó nunca permitiu que ela se afastasse do espaço do terreno. A velha nunca ergueu a voz, o entendimento era velado, os olhos falavam. A maior parte do tempo, passávamos na copa das mangueiras.
Uma tarde, Honorinha entrou na tina do banho. Eu estava no canto do terreno e empurrava com os pés, as pedras, os cacos de louça, os caroços secos de manga, os gravetinhos, enfim, nossas bugigangas das brincadeiras. E ouvi um grito. Olhei para Honorinha e ela estava escorada pela avó, toda cheia de sangue. Havia escorregado no barro ao sair da tina, e fizera um corte profundo na altura da coxa, quase na virilha. Fiquei apavorada, sai correndo em direção de casa. A noite foi sofrida, e na manhã, nem tinha vontade de ir à escola. Mas fui...
Quando cheguei ao terreno, tudo estava quieto, Honorinha não me esperava. Estava dentro da cabana, deitada na rede, com a perna toda enfaixada. Seu João da Botica havia feito o atendimento, e ela precisava ficar em repouso. Eu fiquei ali, sentada na entrada da cabana. Ela dormia. E no outro dia foi assim, e no outro, também. Ela não estava bem, febril, seria levada para outra cidade, para um hospital.
E foi assim. Uma tarde, quando cheguei, só os homens com o menino estavam lá. Honorinha e a avó foram levadas e voltariam assim que ela melhorasse. Eu continuei na espera. Bastava chegar da escola, mal engolia a comida, corria lá para conferir.
Depois de muitos dias, numa tarde percebi que não havia mais roupas no varal, não havia varal, nenhuma panela no fogão. Fui até à porta da cabana, estava vazia. Sem redes, sem roupas.
Partiram. Simples assim. E eu nunca soube o que aconteceu. Para onde seguiram, como Honorinha ficou... Nenhuma notícia, nunca mais.
Até hoje procuro por ela. Deve estar em algum lugar. Será que estudou? Casou? Teve filhos? Será que morreu?!
O que mais me intriga é que ninguém tem qualquer lembrança dela. Nem minha mãe, nem meus irmãos, nem os moradores da vila. Ninguém, absolutamente ninguém diz que conheceu a menina.
Interessante como o menino nunca participou das brincadeiras! Não tenho lembrança de conversar com ele, de ter ouvido a voz dele, o choro! Tenho lembrança apenas do rostinho miúdo.
Honorinha... Será que você realmente existiu?!


Regina Ruth Rincon Caires

NOVEMBRO OU NOVO ALENTO?!







NOVEMBRO OU NOVO ALENTO?!

         Novembro corre solto...
         Mês de véspera, sabor de expectativa...
        O fim do ano é profundamente carismático. Consegue, no simples acontecer, tocar fundo o ânimo das pessoas. Se não pelas festas natalinas, que para muitos são extremamente tristes, depressivas, reminiscentes, então pela “dobra” do salário, afinal o décimo terceiro está a caminho! Contudo, o que mais importa neste fascínio enigmático que envolve o fim do ano é a promessa, o empenho, é o propósito do recomeçar.
         Impressionante como se desencadeia, dentro de cada ser, a esperança do novo, da nova chance, da retomada! As ideias, insistentemente, vão-se sobrepondo, os planos se avolumam, a vida ganha um novo significado.
         Nos miolos, fica uma dança do novo emprego, da nova casa, da nova escola, do novo carro... Fundamental e imprescindível é o NOVO, o sonho, o desejado, o desconhecido. Curioso o espírito humano! Aí a lucidez fica como que enevoada. Não chega a ser a perda da razão, ela só se torna um pouco diminuída, tamanha a força do projeto. Isso mesmo! É um projeto, uma intenção de experimentar o novo. E, com licença, que sensação prazerosa! Dar as costas para o maçante, para o enfadonho, e vislumbrar adiante a perspectiva, a simples esperança do acerto, do “tirar o pé do lodo”. Caramba! Não há nada mais revigorante...
         Pensar que pode não dar certo?! Pra quê? Quem desperta ou quer despertar completamente a razão num momento como este? O importante é não pensar. Isso já foi feito o ano todo. Não é hora de pensar. É hora de planejar, arquitetar, elaborar... É diferente! É hora de sonhar, é isso.
         Um novo ano para o espírito é feito um novo guarda-roupa para o corpo. De repente, é como se cada um tirasse tudo das gavetas, velhas roupas surradas, desestimulantes, puídas, e as trocasse por tudo novo, vibrante, tudo feito sob medida, cheirando à loja. Dá um novo alento. No mínimo, é incitante! 
         E o fim do ano chega...
         Dezembro é feito pássaro!
         Ano novo...
         Os dias simplesmente acontecem. Sucessivos, inevitavelmente, e lânguidos, inexplicavelmente.
         Aos poucos a expectativa, antes afoita, vai-se amainando, os projetos concretizando-se, ou não... O tornar real é diferente, racional demais! Talvez por isso quebre o encanto. Existe uma serenidade de ânimo tal, que chega a ser conflitante com a avidez de antes.
         Os meses passam. Maçantes, enfadonhos, arrastados...
         Ainda bem que novembro não tarda a chegar!


                                                                    Regina Ruth Rincon Caires                                                                
                                                                                             
        
        
        

IDADE DA INOCÊNCIA







IDADE DA INOCÊNCIA


Com apenas três aninhos, a netinha pergunta:

- Vovó, quantos anos você tem?

- 62...

- Nossa! É muito caro, né?


      

                                 Regina Ruth Rincon Caires



ETERNO PESAR







ETERNO PESAR

No silêncio da madrugada, da outra casa, parede-meia, eu conseguia ouvir desaforos sussurrados, choro abafado, gemidos de dor. E isso acontecia recorrentemente. No claro do dia, eu via um casal normal, afora o olhar esquivo da mulher. Reticente, evitei a aproximação. Era o comportamento costumeiro, não cabia a invasão de privacidade. O relacionamento, unidade blindada, pertencia apenas aos envolvidos. E, da crueldade velada, da violência reiterada, nunca ouvi pedido de socorro. Apenas o estampido.  


 Regina Euth Rincon Caires

DA DOAÇÃO À AFLIÇÃO




DA DOAÇÃO À AFLIÇÃO

Em meados da década de 1970, trabalhávamos juntas. Éramos muito parecidas fisicamente. Franzinas, magérrimas, elétricas feito serelepes, com grande deficiência visual minimizada por grossas lentes adaptadas nos óculos enormes, pesados. A dissemelhança ficava evidente nos traços orientais de Yoshiko. Trazia as palmas das mãos sempre amarelas, de um amarelo-abóbora, estranho. Muito tempo depois, fiquei sabendo que era por ingestão excessiva de cenoura.
Naqueles tempos, a possibilidade de doação de sangue ou de órgãos era quase desconhecida. Pouco se falava, não havia qualquer divulgação.  De repente, alguns voluntários mais alguns funcionários da saúde, e mais a diretoria da Santa Casa de Misericórdia, iniciaram uma campanha na cidade visando arrebanhar doadores de córneas. Imaginando que, por sempre ter enxergado muito pouco, nunca poderia doar os olhos, não procurei me inteirar do assunto. Não sabia da independência da córnea, no contexto.
Numa manhã, antes do início do atendimento ao público, a gerente permitiu uma reunião na qual alguns servidores da saúde explicaram a razão da campanha e solicitaram que fizéssemos os nossos cadastros de doadores. Tudo muito embrionário, com formulários a serem preenchidos, elementarmente confeccionados em mimeógrafos, letras roxas, borradas. No rodapé da página havia um espaço a ser preenchido com o nome de cada um, e com a inscrição “DOADOR DE CÓRNEAS”. Fora dada a orientação para que essa parte fosse recortada e colocada na carteira de uso diário. Em caso de ocorrência de morte, as pessoas saberiam que éramos doadores. Incipiência do movimento. As propostas/cadastros foram distribuídas para que fossem preenchidas em outro horário, com a promessa de que na manhã seguinte elas seriam recolhidas pela gerente e repassadas à equipe responsável pela coleta. Preenchi o meu formulário naquela noite. Recortei a tirinha do rodapé que trazia o meu nome e a guardei na carteira. Na manhã seguinte todos os cadastros foram repassados à gerente. Acho que todos entregaram. Não ouvi qualquer comentário que contrariasse essa intenção. Afinal, éramos todos muito jovens, a morte era uma realidade arredada... Depois disso, confesso que pensei que fosse um ciclo concluído. Pensei... Nos dias seguintes, o trabalho normal, a correria de sempre...
Percebi Yoshiko mais calada. Semblante abatido, aparentava estar mais magra, se é que poderia... Já não estava tão ágil nos movimentos, e muitas vezes mostrava sentir tonturas. Trabalhando no guichê ao lado, eu não poderia deixar de notar as mudanças. No horário do lanche procurei falar com ela. Nem precisei alongar o assunto, logo ela caiu no choro. Estava fragilizada, amedrontada. E de pronto me falou que tudo começara no dia em que ela entregou o cadastro de doadora de córneas. Desde então, não conseguia dormir, perdera totalmente o apetite, sentia pavor da morte. E que a morte se tornara um pensamento recorrente. Perguntei a ela o que queria fazer. Ela não titubeou. Queria retirar o cadastro de doação. Não queria ser doadora de córneas. Arrependera-se.
Diante da aflição de Yoshiko, prometi a ela que cuidaria disso.  De imediato, liguei para o serviço de saúde e perguntei onde estavam arquivados os formulários já preenchidos dos doadores de córneas. Recebi a informação de que todos os que foram recolhidos nos diversos locais da cidade, estavam acondicionados em caixas empilhadas em uma sala do posto de saúde, e que tudo seria organizado manualmente e arquivado em ordem alfabética tão logo terminasse a campanha. Ela, rapidamente me entregou a tirinha recortada do formulário que havia preenchido para que eu pudesse apresentá-la no serviço de saúde. E foram dias, semanas de espera. Yoshiko, apesar de um pouco mais aliviada porque dividira a preocupação comigo, continuava abatida. Liguei inúmeras vezes para saber se o serviço de arquivamento havia terminado, e nada... Completada a terceira semana, fui pessoalmente ao serviço de saúde. A sala onde estavam as caixas era um caos deflagrado... Pilhas e pilhas de folhas esperando a organização alfabética, os arquivos ainda vazios. No trabalho havia apenas uma voluntária. Desarvorada, perdida... Ofereci ajuda para o final de semana, e ela agradeceu com um largo sorriso.
Combinei com Yoshiko, e no sábado de manhãzinha mergulhamos no trabalho do arquivo, juntamente com outras voluntárias. Se o material ainda estivesse em caixas, a busca seria mais fácil, poderíamos achar os formulários da nossa empresa. Mas tudo havia sido misturado. Eu me preocupava mais em colocar em ordem alfabética, mas Yoshiko repassava as folhas numa pesquisa voraz. Fazia pena... E assim foi o sábado. No domingo, começamos ainda mais cedo. Yoshiko, um pouco mais desgastada pelo insucesso da procura do dia anterior, tinha um olhar meio dispersivo, incrédulo. Falávamos pouco durante a organização. Eu até rezava. Achar aquele papel era o propósito que traria a paz de Yoshiko. Podia parecer bobagem, mas não era. Para Yoshiko era vital. Começava a escurecer, final de outono, e aproximava a hora de encerrar o trabalho. Fomos guardar no arquivo o último lote separado no dia, e Yoshiko pegou o final da pilha, as letras finais do alfabeto. Passados alguns minutos, ela soltou um grito: “ACHEI!!!”.
Nem acreditei! Estava ali, nos formulários já arquivados, a folha com o nome dela. Ela ria, chorava, pulava... Feliz, feliz como uma criança que ganhou o presente sonhado. Que alívio! Hoje somos idosas. A vida nos levou por destinos diferentes, mas continuamos aqui, vivas, firmes. Será que ela mudou de ideia?! Nem ouso perguntar... A doação, igual a toda e qualquer decisão, deve ser fruto de uma análise profunda, de um amadurecimento de ideia, de meditação, de aceitação, de discussão. Há tempo para tudo. Da vida nasce vida, da morte doamos vida...

Regina Ruth Rincon Caires


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DE HERÓI A VILÃO




DE HERÓI A VILÃO

            Chuvas de novembro.
         A natureza é reanimada. Gotas abundantes e contínuas avolumam-se, formam uma grande tempestade. As pessoas têm até dificuldade para locomoverem-se a fim de realizar seus compromissos mais banais.
         E com isso, o movimento da agência bancária é mínimo. Raramente aparece um ou outro cliente, molhado, encharcado, e nervoso ainda por cima! Sobra tempo até para tomar tenência de prosas corriqueiras entre aqueles que estão por perto, esperando uma trégua da chuva.
         A tarde fica maçante, o ar morno, o corpo sonolento...
         O zunido do rádio, provocado pela interferência dos raios, dos relâmpagos na transmissão, chega a irritar.
         Melhor mesmo é desligá-lo.
         Aliás, ia fazer isso de qualquer maneira. Interessei-me pela conversa iniciada entre o vigilante e um desconhecido.
- Engraçado! O Natal está chegando e nem parece! – diz o desconhecido.
- É, o negócio tá feio! Essa falta de dinheiro acaba com qualquer festa... – responde o vigilante.
- Não, seu guarda! Não é a falta de dinheiro, não! A graça está acabando porque tudo virou costume. Tudo aquilo que só era feito nas festas, agora acontece em qualquer dia... Pensa bem.  Antigamente a gente esperava o Natal como uma criança espera por um presente. No Natal a gente tomava guaraná, comia leitoa, frango assado, panetone, tinha sempre uma garrafa de vinho para ser dividida com toda a família. Hoje não! Por mais difícil que pareça a situação, as crianças sempre têm refrigerante! Não importa de que jeito se consegue comprar, não importa... O que era um acontecimento virou costume, e nada novo foi criado... – fala o desconhecido.
O vigilante ouve atentamente, com ar compenetrado. Cada palavra dita parece explicar-lhe um mundo de coisas, muda conceito. De repente, a situação econômica não é tão penosa assim! Na verdade as pessoas trocaram os valores das coisas. Interessante! O vigilante parece aliviado...
Quando percebe que o desconhecido deu uma pausa na conversa, e estimulado a continuar o assunto, chega-se mais para perto dele. Afinal, aquele homem é um sábio! Pensa profundamente, analisa. E aí está a sabedoria. Está no fato de esmiuçar os acontecimentos corriqueiros, no tentar compreender o simplismo da vida.
- O senhor tem toda a razão!  O costume é que mudou muito. Os dias ficaram iguais. É isso mesmo! Eu lembro bem de que tempos atrás, pela mesa se conhecia o domingo. Era frango e macarronada. As galinhas até se arrepiavam quando ia chegando o final de semana!
- É, seu guarda! É isso mesmo! E mais... Na verdade a vida ficou mais atropelada, mais apertada, mais compromissada, não vou negar. Mas, o que mais tirou o encanto das coisas não foi a escassez do dinheiro. O que deixa a pessoa amolada é a desesperança. Essa não tem jeito de mudar. E vou falar uma coisa pro senhor: ainda que hoje nós, pobres, de repente ficássemos cheios de dinheiro, essa amargura do desconforto, essa desilusão entranhada já deixaram marcas profundas, e nada poderia ser mudado. A nossa cabeça, o nosso juízo não é feito de papel onde, com uma borracha apenas, tudo se apaga. Seríamos ricos desiludidos, pode ter certeza! A ilusão se foi, companheiro. É isso... Mas, deixa pra lá... A chuva está mais branda, já dá pra circular. Até logo, seu guarda, e tenha um feliz Natal!
O vigilante permanece imóvel, indignado.
Perplexo, continua com os olhos fixos no desconhecido que se afasta rumo ao portão.          Tenho a impressão de que está querendo não acreditar no que ouviu. Sente necessidade de não acreditar!
Sujeitinho petulante! Parece o dono da verdade! Com que direito chega aqui e coloca a realidade nua e crua diante dos olhos alheios, dando um nó nos pensamentos e deixando na garganta esse sabor amargo de aflição?!
Atônito, o vigilante ainda olha o portão onde a figura do desconhecido desaparece. Leva tempo para recompor-se. Ergue o boné, coça a cabeça como que para espantar os pensamentos. Vira a cabeça para o meu lado, e fica ainda mais encabulado quando percebe que assisti a tudo.
Tento disfarçar o olhar, mas... Tarde demais. O olhar é feito palavra, não tem volta.
Tenho vontade de puxar prosa, tentar animá-lo um pouco. Mas, para quê? De que adiantaria isso agora? Que remédio?!
Amanhã é outro dia, e ele estará refeito.
É preciso relevar, e tocar adiante.

                                                     Regina Ruth Rincon Caires    

A CARTA QUE EU QUERIA ESCREVER...






A CARTA QUE EU QUERIA ESCREVER...



Hoje, 07 de agosto de 2018.
                                                                                  Amada menina,
        
         Não posso me dizer saudosa porque estou sempre muito próxima a você, mas acho que soube bem pouco sobre mim. Esta é a razão de não querer partir, um dia, sem lhe contar algumas coisas. No tempo, só no tempo, estamos distantes.
Menina, aconteceu tanta coisa nova! Tanta modernidade! Lembra-se da boneca de milho?! Dos caquinhos de louça?! Das bolinhas de barro?! Ninguém fala mais nisso. Agora, se você pergunta para uma criança se ela quer brincar com estilingue, ela corre, acha que você é doida! Lembra-se do medo de alma penada, de assombração?! Acabou... Agora, o medo é de monstros, de figuras gelatinosas... Ah! Você não conheceu gelatina, não vai compreender... Criança não brinca mais na rua, não pode nem pensar em ir sozinha na casa do amigo! Tem roubo, tem assalto, tem sequestro... O que é sequestro?! A criança é levada como se fosse um objeto e quem a levou pede dinheiro para devolvê-la. E muitas vezes, mesmo pagando, não a devolve. Devolve, sim... Morta.
         Mas, não fique assustada, ainda existe muita coisa boa. O que melhorou muito foi a conversa. A criançada agora pode prosear, e como fala! Apesar de que, com você, não foi diferente, falava pelos cotovelos, misericórdia! A molecada é esperta, barulhenta. Dá de dez a zero naqueles bananas do seu tempo! E apareceu um trem chamado computador! Menina, é o bicho! Fico imaginando que, se ele tivesse aparecido no seu tempo, acho que você teria arrasado! Ou teria morrido de susto... E esse computador apareceu para revirar o mundo! Está tudo de perna pro ar, virou febre contagiosa. No início, era enorme, agora, você pode carregá-lo na palma da mão. Você não sabe o que é computador, né?! É um trem que parece uma televisão... Não adianta, você não sabe o que é uma televisão... Vou tentar explicar: televisão é meio parecida com o rádio. Só que na televisão você pode ver o homem falando, a mulher cantando, o produto da propaganda. Você enxerga o que está ouvindo, entende? E o computador é uma televisão, um rádio, um jornal, uma revista, tudo junto, misturado. E você pode se intrometer, pode dar opinião, pode elogiar, pode xingar, pode conhecer pessoas, pode tudo. Ou quase tudo.  
         Muita informação, não é?! Ficou zonza?! Acalme-se! Respire, inspire, respire, inspire... Isso... Pois bem, este danado de computador, agora, está num aparelhinho minúsculo que tem o nome de celular.  Ah! Antes de falar do celular, preciso explicar o que é um telefone. É um aparelho, um negocinho que você usa para falar com alguém que está longe, parecido com o rádio. No rádio, o homem falava com a gente, lembra-se?! A gente ouvia, mas não podia responder para ele. Ele não ouvia a nossa voz. Com o telefone, ele ouve. Ele fala e escuta. O celular é um telefone moderno. Além de servir para falar e ouvir, ele faz tudo, é um computador de bolso. Uma doideira, menina! Tanta modernidade que, quando vou deitar, a cabeça parece um balaio de gato. Se a gente não cuidar, fica falando sozinha... E ainda tem uma nova doença que tem um nome alemão, mas nem vou lhe falar sobre ela... Deixemos isso de lado...
Então, essas novidades cansam um pouco, mas viram cachaça. Sei. Você nunca experimentou cachaça, mas lembra como o avô ficava alegrinho quando tomava umas talagadas?! É a mesma coisa, aquece, anima, desinibe.
Na verdade, acho que não queria que você tivesse vivido essa doideira toda. Foi tão bom do jeito que foi, não é mesmo?! Era prazeroso ficar sentada na forquilha do pé de cajá-manga, lá no alto, muito acima dos telhados, olhando o nada, ou o tudo. Acompanhar, de longe, como se fosse onipresente, o corre-corre dos atarefados. As vistas alcançavam os terreiros das casas, a plantação de café, os colonos. E se encantavam com as revoadas dos passarinhos. E os ouvidos se abastavam do silêncio generoso, necessário. Bastava ficar ali, sem compromisso, sem qualquer cobrança. Hoje, tem gente que paga caro para tentar sentir isso, sabia?! O negócio chama “ioga”. Você se refestelava, de graça e sem hora marcada.
E a cama quentinha, dormindo com os irmãos, amontoados? Que gostosura, não?! Hoje, ainda existe. Mas não há cama para todos. Há muitas crianças dormindo no chão, sem coberta quentinha, sem quarto, sem casa... Ao relento. E gente grande também! Você não viu isso... E aquele monte de primos?! Como você se divertia... Era a mais encrenqueira deles, exigente, sabe-tudo, mas como amou aqueles pequenos... Uma família só, tudo baralhado. Isso ainda existe, mas o número de primos está muito diminuído. A carestia andou controlando tanta parição. As parteiras trabalham menos. Não! Agora não são parteiras. Quase não existem por aqui. O negócio passou para o hospital. Bruguelo nasce de corte na barriga. Uma maluquice!
A escola continua firme, você ia gostar. Tem para todo lado! Cheia de paredes coloridas, de enfeites. Uma criançada que não acaba mais... E, em algumas, as crianças ficam lá o dia inteiro! Acho que você adoraria!!! Ou não?!
E as avós! Lembra-se de como eram, de como você foi cuidada, protegida? Pois é, hoje, tudo continua. Sinto que é o mesmo amor, tem a mesma intensidade, mas a maneira de demonstrar mudou muito. Não é mais só aquela conversa com os olhos, aquele falar calado, aquele proteger velado. Agora o amor, além de tudo isso, é falado em voz alta. Sem vergonha, sem barreira, sem inibição, de cara limpa, frente a frente. E é livre abraçar, beijar, amassar, apertar. Ficou melhor! Você iria adorar!  Talvez, se tivesse sido assim, você teria sido ainda mais forte. E eu também.
Mas, menina, se não foi assim, pode se sentir desforrada. Já sou avó! Eu me lambuzo diariamente deste amor para tentar abastecer você. Falo mil vezes “eu te amo” de boca cheia, de coração transbordando... E amo... E é bom, acho que é das melhores coisas da vida. Melhor que isso, só a paz que sinto quando vejo a mansidão nos olhos dos meus netos. A mais novinha é parecida com você, sabia?! Esperta, geniosa, exigente... Um azougue!
Bem, agora, a conversa final, aquela que me fez procurar um papel e tentar escrever todo o sentimento de gratidão que tenho por você. Não vou esconder que você foi trabalhosa, que me fez pular miúdo, que, muitas vezes, me fez passar pelo buraco da agulha. Mas, do fundo do meu coração, você foi a minha fortaleza, das suas lembranças eu pude forrar a cama e repousar em noites de solidão, e foram muitas. Da sua alegria, da sua vontade de viver, tirei forças em momentos que qualquer um sucumbiria. Da sua perseverança, aprendi a não desistir dos sonhos, e ainda são muitos... Tentei levar a vida com dignidade e, garanto a você, que lutei para não te envergonhar. Se eu fiz coisas erradas?! Claro que fiz! Mas nada que não pudesse ser reparado, acredito eu. Menina, obrigada por tudo! Obrigada por ter vivido tão plenamente. Obrigada por ter armazenado tantos bons pensamentos, tantos bons sentimentos. Sou o resultado de tudo isso.
Com todo o meu amor...

                                               Você, aos 64 anos.  

O RENASCER DA MULHER DO AGRIPINO





O RENASCER DA MULHER DO AGRIPINO

Adelaide era de uma beleza angelical!
Jovem, de pele muito clara, tinha profusas madeixas douradas, levemente encaracoladas, que emolduravam um rosto perfeito. De olhos azuis que pareciam duas contas de água-marinha, lábios rosados sempre trazendo um sorriso. Era o retrato da alegria. Moça bem criada, serena, virtuosa, e sonhadora. Educada com muito amor.
Filha única, temporã de um casamento cheio de amor. E, como dizia seu velho pai, Adelaide era a criatura que viera ao mundo para colocar-lhe sentido na vida.
Nos seus esfuziantes dezoito anos, inocente, sonhadora, enamorou-se de Agripino.
Vindo de outras bandas, Agripino era um homem bem vivido, conhecedor do mundo, e já contava com seus quarenta e poucos anos. Dono do único táxi da vila, cortejador, boa prosa, não demorou muito a cativar o coração da doce Adelaide.
E, depois de algum tempo, apesar de muito choro, de muitas preces, de muitas rezas, de muitos terços, de muitas novenas em família, ignorando todas as súplicas do velho pai; enfim, contra a vontade de todos, Adelaide acabou se juntando a Agripino.
De início foram viver na pequena casa de três cômodos que Agripino alugava desde que chegara à vila. Tudo muito simples, sem qualquer conforto.
Agripino passava o dia todo fora. Quando não estava fazendo o transporte de passageiro para outros lugares, ficava parado no ponto, no largo da igreja matriz.
Nas primeiras semanas, era essa a rotina. E Adelaide estava feliz. Preenchia seus dias com as tarefas da casa, no preparo das refeições, e esperava ansiosamente pelo entardecer, pelo retorno do seu Agripino.
Algum tempo depois, Agripino passou a não chegar ao entardecer. Passou a voltar para casa na madrugada. Sempre desalinhado, cheirando a suor, cigarro e bebida. E sempre com muito dinheiro. Notas e notas de dinheiro que eram guardadas na velha mala, debaixo da cama.
Não adiantava pedir qualquer explicação. Agripino, agora um homem de pouca prosa, afirmava que nada tinha para dizer.
Adelaide apenas observava. Aquela solidão e a falta de coragem de contar ao pai sobre a sua aflição, sobre seu descontentamento, iam consumindo a sua alegria. E, não vendo saída, resignou-se.
Em pouco tempo, Agripino comprou uma casa. Grande, bonita, a mais vistosa da vila. Toda murada, com uma grande garagem, e um quintal enorme.
Agripino mobiliou toda a casa. Móveis de primeira, tudo o que havia de melhor qualidade no mercado.
Na casa havia duas salas contíguas, imensas.  E nelas, Agripino colocou várias mesas de madeira com cadeiras em toda a volta. E só então, explicou a Adelaide que ali seria um espaço para jogos.
Ficou claro que era isso que Agripino fazia todas as noites.  Jogava cartas...
Adelaide ficou sabendo, depois de algum tempo, que antes a jogatina acontecia num salão que ficava nos fundos de uma oficina desativada, salão alugado por Agripino.
Agora, com a nova casa, o local do jogo seria ali. E foi...
Bastava o sol baixar por completo, os homens iam chegando, acomodavam-se nas mesas, e a jogatina estava instalada.
Adelaide ficava com a obrigação de coar e servir café, servir bebidas de toda sorte, preparar e servir petiscos, limpar os cinzeiros, cuidar do banheiro. E isso tudo começava ao entardecer e seguia até altas horas da madrugada.
E em tudo corria dinheiro.
A cada dia aquele ambiente tornava-se mais insuportável para Adelaide. Era uma casa que não era a sua casa. Por mais que limpasse, tudo cheirava à bebida. Parecia que tudo estava sempre enevoado com a fumaça dos cigarros, o cheiro dos cinzeiros impregnava-se nas cortinas, na madeira. E à noite, somavam-se o vozerio infindável daqueles homens, as repetidas gargalhadas, o palavreado que nada tinha com os seus modos, com a sua realidade até ali.
E Adelaide suportava.
Aos poucos, foi perdendo o viço. Não conseguia compreender o que fizera com os seus sonhos. Como não enxergara a outra face do seu Agripino. Agora sabia que ele não havia mudado, ele já era assim quando se conheceram. Apenas ela não havia percebido.
Nesta vida desregrada e triste, Adelaide teve seu primeiro filho. E o segundo. E viraram a razão da sua vida. Eram suas pérolas naquele mundo entediante. Passava os dias acarinhando seus pequenos, tirava dali a gana para a vida, e seguia adiante.
Desertara de muitos sonhos, mas precisava caminhar. A vida continuava célere, não havia outro remédio.
Durante o dia as crianças corriam pela casa toda, pelo enorme quintal sombreado por pés de jabuticaba, manga, laranja, e uma enorme parreira de maracujá. Mas, à noitinha, Adelaide os recolhia no seu quarto, e ali ficavam até adormecerem, e até que os últimos jogadores se fossem. Só então os colocava em suas camas.
E foram anos e anos iguais. Sempre na mesma lida. Ela era apenas a mulher do Seu Agripino. Confinada a servir os fregueses da jogatina.
Não demorou muito e Adelaide perdeu os pais. Primeiro a mãe. O coraçãozinho já fraco deixou de bater. Depois o pai, entristecido e solitário, partiu.
Adelaide agradecia todos os dias por Deus ter-lhe dado os dois filhos. Não ficara só...
Na vila todos sabiam do triste confinamento, mas nunca se ouviu um comentário. Era um silêncio velado. Se algum comentário foi feito, ele nunca saiu das quatro paredes.
As crianças foram crescendo, estudando, tomando rumo.
E a casa, com o tempo, foi se deteriorando. As paredes há muito haviam perdido a cor, o piso se desgastara, o banheiro encardido ficara com aspecto de abandono.
E, na mesma proporção, Adelaide foi envelhecendo.
E Seu Agripino também. O cigarro em excesso mais a bebida foram minando as suas forças. A tosse horrorosa que castigava durante toda a noite e não o deixava dormir intensificou-se de tal maneira que já não podia comer ou beber. O coitado apenas tossia.
Então, encerrou-se a jogatina.
As crianças, que já não eram mais crianças, estavam casadas, estabelecidas em cidades distantes. E desde que os filhos partiram, a vida de Adelaide tornou-se uma noite sem fim. Sem cores, apenas dores...
Havia muito tempo que Agripino não conseguia mais dirigir, extremamente debilitado. E seu velho táxi permanecia na garagem. Desgastado como o dono, e empoeirado. De vez em quando, Agripino girava a chave dando-lhe partida, e apertava o acelerador por várias vezes para desobstruir as velas, como ele alegava.
Mas, depois que o combustível acabou, nem isso ele fez mais.
Foram meses de lenta agonia. Agripino sofreu feito um condenado. E Adelaide também.
Os cuidados que ele exigia eram penosos, e mesmo assim, cansada, sofrida, ela os dispensou incessantemente. Generosamente. Noites e noites a fio, ali, plantada ao lado da cama, ao lado de Agripino, apenas cuidando. Com cumplicidade, comprometida.
E ele se foi. E Adelaide não chorou.
Apenas ela ficou ali.
Primeiro, vendeu o táxi. Doou todas as mesas e cadeiras das salas de jogos para o salão paroquial.
Que alívio quando o caminhão as levou dali!
Adelaide entrou na sala vazia. Suspirou profundamente, correu até as janelas e as abriu. Descerrou todas as cortinas, deixou que a luz invadisse a sala e que a leve brisa soprasse o seu rosto. E percebeu, de repente, que as cores continuavam ali. A noite que parecia ter-se abatido sobre a sua vida não apagara as cores, fora só uma ausência de luz.
Dentro do peito uma chama insistia em reacender-se. A chama da vida, a chama do recomeço. Compreendeu que as dores haviam cessado, e que as cores sempre estiveram ali, esperando que a luz voltasse.
Adelaide ligou o som, ergueu o volume, fechou os olhos, dobrou o braço esquerdo sobre a cintura como se a enlaçasse, o braço direito erguido no ar como se estivesse segurando a mão de um parceiro na dança, e dançou... Com passos largos e ritmados percorria toda a extensão das duas salas. E ria... Feliz, como se a vida lhe abrisse os braços. Sentia a liberdade, a mesma liberdade que a fizera tão completa nos seus doces anos de juventude.
E dançou até se cansar.
Pensou em reformar a casa, mas mudou de ideia. Tudo ali, agora, trazia-lhe recordações tristes, e ela não queria mais nada com a tristeza.
Vendeu a casa, e comprou outra. Menor, recém-construída, confortável, prática. A casa com que sempre sonhara.
Comprou novas roupas, novos sapatos, pintou os cabelos. E ficou bonita. Se não tinha a mesma beleza do passado, com certeza tinha agora o mesmo entusiasmo pela vida.
E voltou a ser sonhadora, a fazer planos, apenas querendo ser feliz.
Em uma noite, num certo baile, Adelaide conheceu Cláudio. O “seu” Cláudio, como ela costumeiramente dizia. Rapaz charmoso, elegante, bonito, que estava de passagem pela vila. Jovem galanteador, bom dançarino, gentil, no esplendor dos seus vinte e seis anos.
Então, Adelaide apaixonou-se perdidamente...
E abriu a sua casa para ele. E a sua vida, também.
Cláudio a tratava como se fosse uma deusa. Vinha para a vila em todos os finais de semana. Na segunda-feira partia, ausentava-se durante toda a semana, e no sábado, infalivelmente e para a felicidade de Adelaide, estava ali.
E vinha sempre carregado de presentes.
Assim, Adelaide era feliz. Infinitamente feliz.
Não se importava com os comentários que corriam pela vila. Adelaide não queria saber onde Cláudio ficava durante a semana, o que fazia... Não lhe incomodava o fato de Cláudio ser muito mais novo do que os seus filhos. Nada disso lhe interessava. Apenas ficava feliz em tê-lo ali, com ela, nos finais de semana.
E foram anos e anos dessa convivência prazerosa. Adelaide sempre muito feliz. Nem se lembrava da última vez em que havia chorado na vida.
Na vila, era um burburinho só. Cada um criava uma história para a vida de Cláudio. Uns diziam que era casado, que tinha outra família, que era pai de muitos filhos, que era um usurpador, um aproveitador, enfim, nenhuma virtude lhe era atribuída.
Adelaide ignorava. Era feliz, e isso lhe bastava.
Passava os dias da semana a preparar a casa, os docinhos, os quitutes que o “seu” Cláudio mais apreciava. E, sonhadora, esperava, como nos seus dezoito anos, a chegada do seu príncipe aos sábados, aquele que lhe cobria de amor e de presentes.
Anos e anos de sábados e domingos de puro encanto, de felicidade, de cuidados, como nunca experimentara antes.
E numa segunda-feira, Cláudio partiu. E Adelaide não abriu as portas da sua casa.
Feliz, ela havia fechado as portas da sua vida.
E na vila, ninguém nunca mais ouviu falar de Cláudio.


Regina Ruth Rincon Caires


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