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domingo, 22 de dezembro de 2019

O ÚLTIMO ATO





O ÚLTIMO ATO

         Acomodada em uma poltrona no saguão do Aeroporto de Cumbica, e seguindo as normas de segurança: mala à frente do corpo, de maneira que as rodinhas toquem seus pés, Elisa aguarda a chamada para o check-in. Está ali há mais de cinco horas, e sabe que ainda vai demorar. Faz três dias que a cidade enfrenta um pavoroso temporal, chuvas torrenciais com incidência alarmante de raios que, a todo momento, provocam apagões.
         Todos os voos estão atrasados, muitos foram cancelados, e não há outro remédio que não seja a paciência. É preciso esperar... E todos esperam, pacificamente. Não há a quem culpar. A natureza sempre está no comando. Em quase toda a volta do saguão, rente às paredes, famílias inteiras acomodam-se em pequenos colchonetes espalhados pelo chão, fazendo das pequenas maletas apoios para a cabeça. E cochilam. Os voos internacionais são os mais complicados...
         Na poltrona ao lado, um senhor, aparentando mais de setenta anos e que já havia cochilado por um bom tempo, recompõe-se, coloca os óculos, abre novamente a pasta de couro que ajeitou sobre as pernas, retira o notebook, e volta à luta pela conexão com a internet. Desde que está ali, já tentou inúmeras vezes. Ajeita os fios, coloca novamente os pequenos fones de ouvido, e vai teclando, teclando por vários minutos até que consegue perceber, com nitidez, a imagem de uma senhorinha na tela. O rosto dele se ilumina. Abre um largo sorriso e toca de leve o rosto que aparece na tela. Toque de carinho, de saudade, de cuidado. E na tela, aquela criatura meiga, de olhos azuis serenos e sorridentes, mexe os lábios numa conversa que só ele ouve. De repente, num castelhano suave, o homem inicia a conversa. Fala da saudade, da alegria de estar voltando, da preocupação com o tempo. E pergunta por todos...
         Elisa consegue compreender muito do que o homem diz. Ela é de família espanhola. Os avós nunca falaram outra língua que não fosse aquele tão familiar castelhano. E os olhinhos da senhorinha na tela continuam mansos, ternos, serenos. Sorriem conforme os lábios. E mostram-se saudosos. Conversam por um bom tempo. Ele a acalma dizendo que tudo está resolvido, que não restou qualquer pendência. Fala como se estivesse terminando ali um compromisso, uma tarefa de vida. E por fim, despedem-se.
         Mesmo com a tela do skype fechada, o homem aguarda uns segundos para retirar os fones de ouvido. E suspira fundo. Desliga o computador, guarda tudo na maleta de couro, alisa a superfície dela com carinho, como se ali estivesse guardada a sua vida. E fica pensativo, olhando fixamente para a parede onde está o painel de controle dos voos, que, daquela distância, não se lê nada. Olha por olhar, o pensamento longe...
Elisa observa tudo. Enquanto via a ternura que envolvia a conversa do senhor ao seu lado e da senhorinha de olhos meigos que aparecia na tela, seus pensamentos traziam lampejos do passado, reminiscências, vivências adormecidas da infância. Lembrou-se dos olhos ternos da avó, da sua candura.
De repente, vira-se para o lado e pergunta ao paciente passageiro:
         - O senhor é espanhol?
         O homem, surpreso, responde num bom português:
         - Não. Sou brasileiro, mas vivo na Espanha há mais de 40 anos.
         Elisa percebe que ele se dispõe a falar. A conversa seria uma boa maneira de não sentir o tempo passar. E, não querendo perder a chance de uma prosa, adianta-se:
         - Muito prazer, meu nome é Elisa!
         - Elisa... Que belo nome! Eu sou Hugo, muito prazer!
         Ela percebe que quando diz o seu nome, o passageiro o repete prontamente, e depois silencia por alguns segundos até que volta à conversa. Elisa sente que o seu nome, pronunciado pelo passageiro, traduz uma busca, uma lembrança, uma memória. Os olhos dele divagam.
         - Estou vindo de Assis e vou a Fortaleza visitar meus netos... - Elisa diz isso e se cala. O seu interlocutor está um pouco alheio. Depois de um silêncio prolongado, Hugo passa a mão pela testa, como que ajeitando os pensamentos, e retoma a conversa.
         - Veja só! Eu venho de uma cidadezinha que fica perto da sua. Nasci lá, e agora precisei voltar, acho que pela última vez. - Suspira fundo, consciente de que a vida já em muito se encurtara, que muitas primaveras já foram vividas. Poucas viriam pela frente. Olhando sempre para a parede onde está o painel, Hugo relata que os falecidos pais deixaram alguns bens, que foram geridos pelo irmão e pela irmã. E depois que eles também partiram, a cunhada cuidou de tudo até que a saúde não mais permitiu. Então tudo foi vendido, e ele precisou voltar ao Brasil para dar fim a todos os contratos, a todas as pendências. Agora nada mais havia para ser resolvido. Tudo chegara ao fim. Elisa percebe que ao alívio que ele demonstra sentir por ter resolvido todos os compromissos, às palavras carregadas de sentimentos e ao seu modo de expressá-las, soma-se um misto de saudade.
         Silêncio... Elisa aquieta-se. Quer respeitar o silêncio de Hugo. O relato que ele acabara de fazer, sobrecarregado de passado, revolveu lembranças que talvez ele nunca tenha exposto a qualquer pessoa, talvez nem a ele mesmo. Depois de certo tempo, Elisa vira-se para Hugo e pergunta:
         - O senhor conhece alguém que se chama Elisa? Notei que quando me apresentei, o meu nome o sobressaltou...
         Hugo, que ainda está com os óculos na ponta do nariz, calmamente os retira do rosto, guarda-os no bolso do grosso casaco de lã, passa as mãos sobre a pasta de couro que continua sobre os joelhos, olha rapidamente para Elisa, volta o olhar para a parede do painel, e responde:
         - Sim, Elisa. Conheci. Foi o grande amor da minha vida.
         - Ah! É a sua graciosa esposa que vi na tela! Eu deveria ter percebido... - Elisa fica envergonhada. Afinal, acaba de confessar a Hugo que ela ficou prestando atenção na conversa dele com a esposa.
         Hugo suspira novamente, passa a mão pelo rosto vincado de rugas, e continua:
         - Não, Elisa. Não é a minha esposa. Minha esposa, essa minha companheira amada, esse rostinho que você disse ter visto na tela, esta é Carmen. É minha amada, meu refúgio, mãe dos meus filhos, avó dos meus netos.
         Outra vez Elisa se sente incomodada.
         Hugo retoma a conversa:
         - Você tem paciência para ouvir a minha história? Tempo, eu sei que teremos de sobra. A energia tornou a cair, o que significa mais atrasos para os nossos voos.
         Elisa vira o corpo, reacomoda-se na poltrona, olha fixamente para Hugo. Ele permanece com os olhos baixos. Aliás, ele não a encara, fala sempre olhando em frente, e desse modo Elisa vê apenas o seu rosto de perfil.
         - O senhor pode falar. Gostaria muito de ouvir a sua história!
         - Elisa, por obséquio, comecemos por eliminar este “senhor”. Isso me faz sentir ainda mais velho. E a nossa diferença de idade não ultrapassa muito os sete anos. Quando jovens esta diferença parece imensa, mas na velhice quase tudo se iguala.
         Elisa cora novamente. Desculpa-se e promete que não mais o tratará por “senhor”.
         Outro curto silêncio. Hugo faz um barulho com a garganta, como se preparasse a voz, e começa:
         - Bem... Nasci nessa cidadezinha que fica perto de onde você mora. Meu pai era sitiante, morávamos no sítio e éramos três irmãos. Álvaro, meu irmão mais velho, eu, e Emília, minha irmã temporã, nove anos mais nova que eu. Desde criança, trabalhávamos na terra. O sítio ficava a menos de dois quilômetros da vila, portanto, pudemos estudar e trabalhar. Eu e meu irmão, e outros amigos da vizinhança, fazíamos o percurso diário de ida e volta da escola.
         A energia volta num repente, olhamos rapidamente para o teto, e quase não temos tempo de observar a claridade. Um novo relâmpago ilumina a parede de vidro, e a energia torna a cair. Hugo dá um sorriso irônico e continua:
         - Terminado o curso primário, meu pai nos matriculou na Escola de Comércio, curso equivalente ao antigo ginasial. O curso era noturno, e primeiro meu irmão, depois eu, passamos a fazer o trajeto a cavalo. Meu irmão era desinibido, sonhava alto, queria sair do sítio a todo custo. Queria trabalhar na vila. Não gostava da lida com a terra. E assim que terminou o curso da Escola de Comércio, conseguiu um trabalho no único escritório de contabilidade da vila. Trabalhavam apenas o contador e ele, como ajudante. Eu continuei no sítio, no trabalho da terra. Ele levava a comida, ficava o dia todo na vila e voltava para dormir em casa.
         Elisa não perde uma palavra. E tudo que ouve vai preenchendo um espaço na sua memória como se ela colocasse livros em uma prateleira. Hugo realinha o corpo na poltrona, passa os dedos pela correia do relógio, e retoma a narrativa:
         - Quando meu irmão completou 18 anos, havia juntado algum dinheiro, resolveu vir para São Paulo. Ele soube pelos amigos que aqui viviam que os bancos da capital estavam recrutando muitos empregados. Meio a contragosto dos meus pais, ele veio e eu passei a ocupar a vaga dele no escritório de contabilidade, com a promessa de que assim que ele estivesse estabelecido e eu atingisse a maioridade, ele me buscaria. A espera foi muito maior do que eu imaginava... Passei a trabalhar na vila, serviço que exigia muito mais da cabeça e muito menos do corpo. Passados muitos meses, eu já havia completado 18 anos e continuava ali. E por ali ficaria por muito tempo...
         Hugo para de falar. Elisa não sabe se ele se cansou ou se está tentando ordenar as ideias. Fica quieta, cruza as pernas, e ele, virando-se para ela, pergunta:
         - Está cansada de ouvir? Quer que eu me cale?
         Elisa, totalmente envolvida pela história, responde prontamente:
         - Não, por favor! Continue...
         E Hugo continua:
         - Toda manhã, quando eu entrava na vila, fazendo o mesmo percurso por anos e anos a fio, percebia uma garota que diariamente deixava a sua casa em direção à escola, sempre no mesmo horário, sempre acompanhada do irmão, falando pelos cotovelos, irrequieta, alegre. Não era uma menina bonita. Magra, olhos grandes, cabelos curtos, mas irradiava vida. E eu ficava ansioso para chegar à vila todos os dias, e encontrá-la. Ela nem me notava. Durante anos, nunca me olhou. O tempo foi passando. Meu irmão, na Capital, estava cada vez mais animado. Prestes a concluir o curso médio no período noturno, preparava-se para prestar o vestibular em História. Eu continuava na vila. E estava feliz. Animado com o trabalho, e cada vez mais apegado à expectativa simplória de olhar aquela menina que dia após dia ia tomando conta do meu coração. Na minha timidez excessiva, levei mais de um ano para descobrir que o nome dela era Elisa. E assim mesmo, só consegui saber porque perguntei ao guarda-noturno das Lojas Riachuelo, Seu João. Todos os dias, como eu chegava muito cedo do sítio, ficava conversando com ele até que o escritório abrisse. O escritório ficava ao lado da loja. Acho que ele percebeu o meu mau jeito, o meu embaraço ao procurar saber o nome daquela menina.
         Elisa, imóvel, ouve atentamente, nem pisca... Não tira os olhos do perfil daquele homem. Tudo que ele diz, reconstitui na sua mente vários quadros desfocados da sua infância. Imagens desagregadas, pinçadas aqui e ali, mas a narrativa a envolve de tal maneira que está anestesiada. Não pensa na chuva, não se preocupa com os clarões repentinos dos relâmpagos, com o som ensurdecedor dos trovões. Nada importa... Apenas quer ouvir. Hugo olha de soslaio para a atenta ouvinte, pigarreia, dá uma balançada no corpo e continua:
         - E como eu gostava de olhá-la... Muitas vezes eu ficava escondido, recostado no pilar da caixa-d’água que ficava em frente à casa de Elisa. E o dia ficava ainda mais lindo quando ela apontava no portão. Sempre com o fiel escudeiro: o irmão. Com o tempo Elisa transformou-se numa moça mais recatada, passou a usar óculos, não falava mais tão alto, mas continuava tagarela. E continuava com o mesmo encanto de menina. Irradiava vida. Quando completei 21 anos, descobri que Elisa tinha 14. Ela estava terminando o curso ginasial e preparava-se para continuar os estudos em outra cidade. Senti uma tristeza imensa quando soube que ela, no ano seguinte, não estaria ali encantando as minhas manhãs. Os meus dias ficariam sem o brilho daquela presença. E antes que o ano terminasse, meu irmão foi me buscar. Já havia sido promovido no banco onde trabalhava, estava cursando História. Ele estava feliz da vida! E vim para São Paulo... E trouxe comigo o amor por Elisa. Fiz um teste, passei por entrevista e fui admitido pelo mesmo banco. Passei a trabalhar no Departamento de Marketing. Tudo novo, cheio de números, de estatísticas, e de pouca conversa... Morávamos em um minúsculo apartamento no centro, perto da Praça da Sé, bem próximo ao banco. Passei a cursar o ensino médio no período da noite. Em momento algum deixei de pensar em Elisa. Ela povoava os meus pensamentos na caminhada de ida e volta ao trabalho, nos intervalos, na ida e volta para a escola, nas noites insones, nos finais de semana quando eu faxinava o apartamento, quando cuidava das roupas, quando preparava a comida. Pensava no rostinho dela, o que estaria fazendo, com quem estaria... Quanta saudade! E os meses passaram lentamente, os anos...
         Elisa continua ali, mergulhada na história, um pouco confusa. As palavras de Hugo misturam-se às lembranças que lampejam na sua memória, e parece que tudo vira uma coisa só. Olha o rosto de Hugo, os cabelos brancos, as mãos enrugadas. Não conhece aquele homem, tem certeza disso. Não conhece aquele rosto. Por que tudo que fala é tão familiar para ela?!
         Hugo leva as mãos aos ouvidos, pressentindo o barulho ensurdecedor do trovão, após um relâmpago devastador que clareia todo o saguão às escuras. E realmente ele vem. Depois de um estalo assustador, o trovão parece tremer o chão. Há gritos, choro de crianças, pessoas rezando. Quando tudo serena, Hugo vira-se para Elisa e pergunta:
         - Continuo?!
         Tentando represar a ansiedade, mas com pouco sucesso, ela responde:
         - Por favor, Hugo, termine de contar a sua história.
         - Elisa, mas ainda falta muita coisa a ser contada...
         - Hugo, teremos tempo, não se preocupe.
         - Então, vamos lá... Durante as férias eu voltava à vila. E nos poucos dias que passava por lá, procurava notícias de Elisa. Conseguia poucas informações. Nunca comentei sobre o meu amor com ninguém, nem mesmo com o meu irmão. Soube que ela estava namorando, que gostava muito de dançar, que continuava alegre, que tinha muitos amigos... E a vi em um Natal. Do mesmo jeitinho, com a mesma meiguice, com a mesma alegria, irradiando vida.
         Silêncio... Elisa nem se mexe. Nem se lembra dos cuidados com a mala, nem percebe se as rodinhas ainda estão a tocar os seus pés, nada tem importância, apenas a conversa lhe interessa. Os miolos fervilham, sua alma está misturada.
         Hugo retoma:
         - Quando terminei o ensino médio, cursei Administração de Empresas. Meu irmão já havia terminado o curso de História, feito concurso público para lecionar na rede estadual de ensino, e escolheu o cargo na cidade de Cândido Mota, cidade que ficava perto da nossa vila, portanto, perto dos meus pais. Por lá conheceu minha cunhada, formou família, e ali ficou estabelecido até a sua morte. Eu continuei aqui, na capital. Só, absolutamente só. Não me interessava por ninguém. Elisa ocupava o meu pensamento, o meu coração. Dedicava-me ao trabalho e ao curso de maneira intensa. Tornei-me o responsável pelo Departamento de Marketing. No último Natal que passei com toda a minha família, vi Elisa novamente. Havia terminado a faculdade e iria se casar. Quase endoideci... Mas, o que eu esperava?! O que poderia acontecer de diferente?! Ela nunca soube do meu amor, nunca me olhou, acho que nunca me viu... E essa foi a última vez que a vi. Quando retornei ao trabalho, fui convidado pela Diretoria do Banco a assumir um novo cargo. Não seria no Brasil, seria em Barcelona, em uma nova agência que lá seria instalada. Foi uma surpresa sem medida! De início preocupei-me com o idioma, mas logo fui convencido pelo meu gerente de que isso não seria empecilho, porque a agência seria criada para atender, de maneira mais eficaz, os brasileiros que lá viviam. Falei com a minha família, e depois de muito choro e de muitas bênçãos, parti para Barcelona.
         - Elisa, você ainda está acordada? Esse palavrório todo não a fez dormir?
         Elisa continua atenta. Percebe que essa parada fora providencial. Ele está com a voz embargada, e propositalmente, tentando controlar os sentimentos, interrompe a narrativa. Igualmente emocionada, e relutando em não mostrar, Elisa responde:
         - Não, Hugo. Não estou dormindo... - Intrigada com a situação, e sem entender a causa daquele silêncio embaraçoso para ambos, Elisa pede a Hugo que continue.
         - Está bem... A viagem foi difícil, já estava com o peito cheio de saudade antes mesmo de partir, e o pouco que eu cochilava, acordava sobressaltado, com uma sensação de solidão extrema, fechava os olhos e via o rosto de Elisa, da minha mãe, da minha irmã... E depois da chegada a Barcelona, a adaptação foi ainda mais difícil. Não só pelo idioma, mas principalmente pelo clima. Cheguei lá quando já havia pouca neve, mas o frio era assustador! Para ser mais exato, levei mais de dois anos para me sentir confortável naquele país. E quando isso aconteceu, passei a visitar lugares, a viajar pelas cidades próximas. E em um desses passeios, numa visita à cidade de Badalona, dentro da província de Barcelona, eu conheci a minha Carmen. Era começo do verão, o sol estava fraquinho naquela manhã, a praça estava repleta de crianças brincando nos balanços, nas gangorras. E eu a vi, sentada em um banco, lendo um livro. Sentei-me ao lado. Ela tinha a pele infinitamente clara, cabelos cor de mel, esvoaçantes, e quando a cumprimentei, olhando o seu rosto de frente, fiquei encantado com a cor dos olhos. Azuis como o céu que ao fundo emoldurava o seu rosto.
         - Cansada de escutar-me? – pergunta Hugo.
         Elisa leva um tempo para perceber que ele está falando com ela. Toda sem jeito recompõe-se, pede desculpas e diz a Hugo que não está cansada, que está fascinada pela história.
         - Verdade, Elisa?! Não está aborrecida com tanta falação?!
         - Não, Hugo! Eu ficaria a minha vida toda ouvindo...
         Hugo pigarreia novamente, pensa por alguns segundos procurando o fio do novelo, e volta:
         - Bem, a nossa timidez era tamanha que ficamos calados por mais de dez minutos. Aí comecei a falar, e ela logo percebeu que eu não era espanhol, pelo sotaque, é claro! De pouco em pouco ela erguia os olhos para o lado do balanço. E ali descobri que ela era mãe de duas crianças, Lúcia, de três, e Pablo, de cinco anos. Soube que era viúva. Perdera o marido havia dois anos, num acidente de trabalho da construção civil. Carmen era professora, amava a profissão, gostava de ler, gostava de trabalhos manuais. Para dizer a verdade, naquele dia ouvi mais do que falei. E enquanto as crianças brincavam, conversamos por mais de uma hora. Os filhos dela eram lindos! Parecidos com ela... Quando as crianças a chamaram querendo voltar para casa, tudo foi tão tumultuado que mal nos despedimos, e eu fiquei sem saber o endereço ou o telefone dela. Voltei a Badalona na semana seguinte, mas não a encontrei. E numa terceira volta, encontrei Carmen na mesma praça. Dali em diante, passamos a nos falar frequentemente, começamos a namorar e depois de um bom tempo nos casamos. Passei a morar em Badalona, e viajava todos os dias. Confesso a você que muitas e muitas vezes, nas viagens de ida e de volta, nos momentos de silêncio, eu me lembrava do rostinho de Elisa. Mas de outra maneira, de um modo sereno, melancólico. Eu estava feliz com Carmen e com os filhos que eu abracei. E fui muito feliz! Não tivemos outros filhos.
         - E você nunca mais veio ao Brasil?! Só agora? – pergunta Elisa.
         - Não, Elisa! Voltei aqui quando perdi meu pai, em 1988. Depois, quando perdi minha mãe, em 1993, e em 1998, quando meu irmão também partiu. Depois do meu casamento, meu irmão e minha irmã sempre nos visitavam. Álvaro, meu irmão, professor de História, apaixonado pela Europa, aproveitava as férias de julho para conhecer vários países, e Emília, minha irmã, muito ligada a mim, nunca voltava com ele. Esticava a temporada em nossa companhia, enquanto existia calor. Quando o inverno se aproximava era chegada a hora de voltar. Ela não tolerava o frio europeu. E após um último retorno, inesperadamente, ela também partiu. Nessa ocasião, não vim ao Brasil. Queria guardar na memória o rostinho de Emília cheio de vida, alegre entre as panelas e as conversas com Carmen na cozinha da nossa casa. E retornei agora.
         - E quando esteve aqui, não procurou saber de Elisa?!
         - Não, não procurei. Mas, mesmo não procurando, soube que ela não era feliz.
         Elisa fica apreensiva. O que ele contaria agora?
         De repente, a energia voltou. Só então Elisa percebe que a chuva havia dado uma trégua. Esteve tão ausente dali por certo tempo, precisa tomar o tino e relembrar que está no saguão do aeroporto, que irá para Fortaleza... Divaga, os seus pensamentos visitaram lugares, conversas, situações adormecidas... Agora, com a claridade reinando no saguão, Elisa percebe que o rosto de Hugo parece abatido, não tem o mesmo entusiasmo que ela vira durante a conversa no skype.
         - Hugo, e hoje, você é feliz?
         - Sim, Elisa. Sou um homem feliz. Vivi intensamente a vida em família, nossos filhos se casaram, nos deram netos maravilhosos que eu amo incondicionalmente, são pessoas felizes. Eu e Carmen estamos aposentados, somos companheiros inseparáveis, cúmplices em todos os momentos. Um grande amor nos une, fizemos uma boa história juntos, temos boa saúde, apenas a idade está avançada, mas por isso devemos agradecer, não é mesmo?
         De repente, as chamadas de voos retornam, e Hugo precisa se encaminhar para a área de embarque.
         -  Hugo, você ficará para sempre na Espanha?!
         - Você quer dizer, depois que eu morrer, Elisa? Sim, ficarei lá, junto dos meus últimos amores. É mais prático, mais sensato, e lá estarão os meus filhos, os meus netos, bisnetos...
         Elisa se cala. Hugo se coloca em pé, balança um pouco as pernas, como para desentorpecê-las, parecem meio dormentes. Ajeita o casaco, coloca a maleta sobre a poltrona, vira-se para o lado e diz:
         - Elisa, você poderia me dar um abraço?
         De início ela não compreende, mas coloca-se prontamente de pé. Hugo se aproxima e passa os braços em volta do seu corpo num caloroso abraço. Afetuoso, apertado, demorado, quase a ergue do chão. E ela se entrega ao abraço.
         Visivelmente emocionado, Hugo recompõe-se, e diz:
         - Menina Elisa, que a sua vida seja muito feliz. Que os anos pela frente sejam plenos de alegria, de amor, de paz.
         - Obrigada, Hugo! Eu desejo o mesmo a você... Tenha uma boa viagem!
         Hugo coloca-se bem perto, e num gesto delicado toca-lhe o rosto com a mão, como se acompanhasse o contorno da sua face. E vira-se para o portão de embarque.
         Lá, de longe, faz um aceno de despedida... Elisa está emocionada. Levanta o braço e acena. Depois que ele ultrapassa o portão e some de vista, joga o corpo sobre a poltrona. Fica um tempo olhando a entrada de embarque. Sente um desconforto no peito, uma confusão de pensamentos. Tem certeza de que nunca viu aquele rosto antes, que nunca conversou com aquela pessoa antes, mas tudo que ele disse sobre a vila, os costumes, as pessoas, era exatamente igual a tudo que vivera.
         Fica inquieta. Precisa movimentar-se um pouco, arejar as ideias. Ergue-se, pega a mala e sai em direção à janela. Olha o céu carrancudo, logo será noite. Sente vontade de chorar. Mas, por que chorar?! Começa a relembrar toda a conversa com Hugo. Ele falava da vila onde ela nasceu e cresceu. Ele disse que a diferença de idade entre eles não era maior que sete anos, e falou com convicção. Ele falou do escritório de contabilidade que ficava ao lado das Lojas Riachuelo, cujo guarda-noturno era o Seu João. Que a Elisa que ele via todos os dias morava em frente à caixa d’água, que ela estava sempre acompanhada do irmão. Que não era bonita, que era magra, que era alegre, que era tagarela. Que aos 14 anos foi estudar em outra cidade...
         Meu Deus, ele falava dela!
         Elisa segue rapidamente para a área central do saguão. Coloca-se em frente ao painel de controle dos voos e procura a partida para Barcelona. Tem muita dificuldade para enxergar, a vista anda fraca. Depois de alguns minutos encontra o voo, e o aviso de “embarque concluído”. Sente um aperto no peito...    Por que não perguntou a Hugo se era dela que ele falava? Por que ele não deu a ela a oportunidade de se desculpar, de explicar que não sabia daquele amor, que não queria magoá-lo?!
         Nesse instante é feita a chamada para o check-in do voo para Fortaleza. Elisa, mecanicamente, dirige-se ao balcão. A voz da atendente serviu para trazê-la de volta à realidade. Delicada, solícita. Talvez tenha percebido que Elisa estava perturbada, e mostra-se extremamente amável. O voo sairá dentro de uma hora. Com a bagagem despachada, Elisa sente-se mais livre. Toma um suco e volta para o saguão. Procura pela poltrona onde estava sentada, e lá novamente acomoda-se... Olha para o lado. A poltrona vazia... Hugo está a caminho de casa. O que estará pensando?! Começa a ponderar com mais clareza tudo o que havia acontecido ali, e percebe a generosidade de Hugo. Ele queria que ela soubesse que foi amada, que foi querida. Queria que ela sentisse que havia sido importante na vida de alguém. Ela não lhe devia qualquer explicação, qualquer escusa. Por que iria pedir desculpas a ele?! Não fora culpada de nada, nunca soube de nada. Ela havia sido protagonista de uma história de amor que não aconteceu, uma história que ela não conheceu. Elisa só esteve presente ali, no fechar das cortinas, naquele último ato.
         Neste instante, o serviço de som do aeroporto faz a chamada para o voo 3322 com destino a Fortaleza. Elisa se levanta, olha a poltrona ao lado. Tenta vislumbrar a figura de Hugo, mas tudo é muito nebuloso no seu pensamento. Segue a caminho do portão de embarque. Vira-se novamente antes de seguir pelo corredor. E, comovida, acena...       


Regina Ruth Rincon Caires



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