O
ÚLTIMO ATO
Acomodada em uma poltrona no saguão do Aeroporto
de Cumbica, e seguindo as normas de segurança: mala à frente do corpo, de
maneira que as rodinhas toquem seus pés, Elisa aguarda a chamada para o check-in. Está ali há mais de cinco
horas, e sabe que ainda vai demorar. Faz três dias que a cidade enfrenta um pavoroso
temporal, chuvas torrenciais com incidência alarmante de raios que, a todo
momento, provocam apagões.
Todos os voos estão atrasados, muitos
foram cancelados, e não há outro remédio que não seja a paciência. É preciso
esperar... E todos esperam, pacificamente. Não há a quem culpar. A natureza sempre
está no comando. Em quase toda a volta do saguão, rente às paredes, famílias
inteiras acomodam-se em pequenos colchonetes espalhados pelo chão, fazendo das
pequenas maletas apoios para a cabeça. E cochilam. Os voos internacionais são
os mais complicados...
Na poltrona ao lado, um senhor, aparentando
mais de setenta anos e que já havia cochilado por um bom tempo, recompõe-se, coloca
os óculos, abre novamente a pasta de couro que ajeitou sobre as pernas, retira
o notebook, e volta à luta pela conexão com a internet. Desde que está ali, já
tentou inúmeras vezes. Ajeita os fios, coloca novamente os pequenos fones de
ouvido, e vai teclando, teclando por vários minutos até que consegue perceber,
com nitidez, a imagem de uma senhorinha na tela. O rosto dele se ilumina. Abre
um largo sorriso e toca de leve o rosto que aparece na tela. Toque de carinho,
de saudade, de cuidado. E na tela, aquela criatura meiga, de olhos azuis
serenos e sorridentes, mexe os lábios numa conversa que só ele ouve. De
repente, num castelhano suave, o homem inicia a conversa. Fala da saudade, da
alegria de estar voltando, da preocupação com o tempo. E pergunta por todos...
Elisa consegue compreender muito do que
o homem diz. Ela é de família espanhola. Os avós nunca falaram outra língua que
não fosse aquele tão familiar castelhano. E os olhinhos da senhorinha na tela
continuam mansos, ternos, serenos. Sorriem conforme os lábios. E mostram-se
saudosos. Conversam por um bom tempo. Ele a acalma dizendo que tudo está
resolvido, que não restou qualquer pendência. Fala como se estivesse terminando
ali um compromisso, uma tarefa de vida. E por fim, despedem-se.
Mesmo com a tela do skype fechada, o homem aguarda uns
segundos para retirar os fones de ouvido. E suspira fundo. Desliga o computador,
guarda tudo na maleta de couro, alisa a
superfície dela com carinho, como se ali estivesse guardada a sua vida. E fica
pensativo, olhando fixamente para a parede onde está o painel de controle dos
voos, que, daquela distância, não se lê nada. Olha por olhar, o pensamento
longe...
Elisa
observa tudo. Enquanto via a ternura que envolvia a conversa do senhor ao seu
lado e da senhorinha de olhos meigos que aparecia na tela, seus pensamentos traziam
lampejos do passado, reminiscências, vivências adormecidas da infância. Lembrou-se
dos olhos ternos da avó, da sua candura.
De
repente, vira-se para o lado e pergunta ao paciente passageiro:
-
O senhor é espanhol?
O homem, surpreso, responde num bom
português:
-
Não. Sou brasileiro, mas vivo na Espanha há mais de 40 anos.
Elisa percebe que ele se dispõe a falar.
A conversa seria uma boa maneira de não sentir o tempo passar. E, não querendo
perder a chance de uma prosa, adianta-se:
-
Muito prazer, meu nome é Elisa!
- Elisa... Que belo nome! Eu sou Hugo,
muito prazer!
Ela percebe que quando diz o seu nome,
o passageiro o repete prontamente, e depois silencia por alguns segundos até
que volta à conversa. Elisa sente que o seu nome, pronunciado pelo passageiro, traduz
uma busca, uma lembrança, uma memória. Os olhos dele divagam.
-
Estou vindo de Assis e vou a Fortaleza visitar meus netos... - Elisa diz
isso e se cala. O seu interlocutor está um pouco alheio. Depois de um silêncio
prolongado, Hugo passa a mão pela testa, como que ajeitando os pensamentos, e
retoma a conversa.
-
Veja só! Eu venho de uma cidadezinha que fica perto da sua. Nasci lá, e agora
precisei voltar, acho que pela última vez. - Suspira fundo, consciente de
que a vida já em muito se encurtara, que muitas primaveras já foram vividas.
Poucas viriam pela frente. Olhando sempre para a parede onde está o painel,
Hugo relata que os falecidos pais deixaram alguns bens, que foram geridos pelo
irmão e pela irmã. E depois que eles também partiram, a cunhada cuidou de tudo
até que a saúde não mais permitiu. Então tudo foi vendido, e ele precisou
voltar ao Brasil para dar fim a todos os contratos, a todas as pendências.
Agora nada mais havia para ser resolvido. Tudo chegara ao fim. Elisa percebe
que ao alívio que ele demonstra sentir por ter resolvido todos os compromissos,
às palavras carregadas de sentimentos e ao seu modo de expressá-las, soma-se um
misto de saudade.
Silêncio... Elisa aquieta-se. Quer
respeitar o silêncio de Hugo. O relato que ele acabara de fazer, sobrecarregado
de passado, revolveu lembranças que talvez ele nunca tenha exposto a qualquer
pessoa, talvez nem a ele mesmo. Depois de certo tempo, Elisa vira-se para Hugo
e pergunta:
- O senhor conhece alguém que se chama
Elisa? Notei que quando me apresentei, o meu nome o sobressaltou...
Hugo, que ainda está com os óculos na
ponta do nariz, calmamente os retira do rosto, guarda-os no bolso do grosso
casaco de lã, passa as mãos sobre a pasta de couro que continua sobre os
joelhos, olha rapidamente para Elisa, volta o olhar para a parede do painel, e responde:
-
Sim, Elisa. Conheci. Foi o grande amor da minha vida.
- Ah! É a sua graciosa esposa que vi na
tela! Eu deveria ter percebido... - Elisa fica
envergonhada. Afinal, acaba de confessar a Hugo que ela ficou prestando atenção
na conversa dele com a esposa.
Hugo suspira novamente, passa a mão
pelo rosto vincado de rugas, e continua:
-
Não, Elisa. Não é a minha esposa. Minha esposa, essa minha companheira amada,
esse rostinho que você disse ter visto na tela, esta é Carmen. É minha amada,
meu refúgio, mãe dos meus filhos, avó dos meus netos.
Outra vez Elisa se sente incomodada.
Hugo retoma a conversa:
- Você tem paciência para ouvir a minha
história? Tempo, eu sei que teremos de sobra. A energia tornou a cair, o que
significa mais atrasos para os nossos voos.
Elisa vira o corpo, reacomoda-se na
poltrona, olha fixamente para Hugo. Ele permanece com os olhos baixos. Aliás,
ele não a encara, fala sempre olhando em frente, e desse modo Elisa vê apenas o
seu rosto de perfil.
-
O senhor pode falar. Gostaria muito de ouvir a sua história!
- Elisa, por obséquio, comecemos por eliminar
este “senhor”. Isso me faz sentir ainda mais velho. E a nossa diferença de
idade não ultrapassa muito os sete anos. Quando jovens esta diferença parece
imensa, mas na velhice quase tudo se iguala.
Elisa cora novamente. Desculpa-se e
promete que não mais o tratará por “senhor”.
Outro curto silêncio. Hugo faz um
barulho com a garganta, como se preparasse a voz, e começa:
- Bem... Nasci nessa cidadezinha que
fica perto de onde você mora. Meu pai era sitiante, morávamos no sítio e éramos
três irmãos. Álvaro, meu irmão mais velho, eu, e Emília, minha irmã temporã,
nove anos mais nova que eu. Desde criança, trabalhávamos na terra. O sítio
ficava a menos de dois quilômetros da vila, portanto, pudemos estudar e
trabalhar. Eu e meu irmão, e outros amigos da vizinhança, fazíamos o percurso
diário de ida e volta da escola.
A energia volta num repente, olhamos
rapidamente para o teto, e quase não temos tempo de observar a claridade. Um novo
relâmpago ilumina a parede de vidro, e a energia torna a cair. Hugo dá um
sorriso irônico e continua:
- Terminado o curso primário, meu pai
nos matriculou na Escola de Comércio, curso equivalente ao antigo ginasial. O
curso era noturno, e primeiro meu irmão, depois eu, passamos a fazer o trajeto
a cavalo. Meu irmão era desinibido, sonhava alto, queria sair do sítio a todo
custo. Queria trabalhar na vila. Não gostava da lida com a terra. E assim que
terminou o curso da Escola de Comércio, conseguiu um trabalho no único
escritório de contabilidade da vila. Trabalhavam apenas o contador e ele, como
ajudante. Eu continuei no sítio, no trabalho da terra. Ele levava a comida,
ficava o dia todo na vila e voltava para dormir em casa.
Elisa não perde uma palavra. E tudo que
ouve vai preenchendo um espaço na sua memória como se ela colocasse livros em
uma prateleira. Hugo realinha o corpo na poltrona, passa os dedos pela correia
do relógio, e retoma a narrativa:
- Quando meu irmão completou 18 anos, havia
juntado algum dinheiro, resolveu vir para São Paulo. Ele soube pelos amigos que
aqui viviam que os bancos da capital estavam recrutando muitos empregados. Meio
a contragosto dos meus pais, ele veio e eu passei a ocupar a vaga dele no
escritório de contabilidade, com a promessa de que assim que ele estivesse
estabelecido e eu atingisse a maioridade, ele me buscaria. A espera foi muito
maior do que eu imaginava... Passei a trabalhar na vila, serviço que exigia
muito mais da cabeça e muito menos do corpo. Passados muitos meses, eu já havia
completado 18 anos e continuava ali. E por ali ficaria por muito tempo...
Hugo para de falar. Elisa não sabe se
ele se cansou ou se está tentando ordenar as ideias. Fica quieta, cruza as
pernas, e ele, virando-se para ela, pergunta:
- Está
cansada de ouvir? Quer que eu me cale?
Elisa, totalmente envolvida pela
história, responde prontamente:
-
Não, por favor! Continue...
E Hugo continua:
-
Toda manhã, quando eu entrava na vila, fazendo o mesmo percurso por anos e anos
a fio, percebia uma garota que diariamente deixava a sua casa em direção à
escola, sempre no mesmo horário, sempre acompanhada do irmão, falando pelos
cotovelos, irrequieta, alegre. Não era uma menina bonita. Magra, olhos grandes,
cabelos curtos, mas irradiava vida. E eu ficava ansioso para chegar à vila
todos os dias, e encontrá-la. Ela nem me notava. Durante anos, nunca me olhou.
O tempo foi passando. Meu irmão, na Capital, estava cada vez mais animado.
Prestes a concluir o curso médio no período noturno, preparava-se para prestar
o vestibular em História. Eu continuava na vila. E estava feliz. Animado com o
trabalho, e cada vez mais apegado à expectativa simplória de olhar aquela
menina que dia após dia ia tomando conta do meu coração. Na minha timidez
excessiva, levei mais de um ano para descobrir que o nome dela era Elisa. E
assim mesmo, só consegui saber porque perguntei ao guarda-noturno das Lojas
Riachuelo, Seu João. Todos os dias, como eu chegava muito cedo do sítio, ficava
conversando com ele até que o escritório abrisse. O escritório ficava ao lado
da loja. Acho que ele percebeu o meu mau jeito, o meu embaraço ao procurar
saber o nome daquela menina.
Elisa, imóvel, ouve atentamente, nem
pisca... Não tira os olhos do perfil daquele homem. Tudo que ele diz,
reconstitui na sua mente vários quadros desfocados da sua infância. Imagens
desagregadas, pinçadas aqui e ali, mas a narrativa a envolve de tal maneira que
está anestesiada. Não pensa na chuva, não se preocupa com os clarões repentinos
dos relâmpagos, com o som ensurdecedor dos trovões. Nada importa... Apenas quer
ouvir. Hugo olha de soslaio para a atenta ouvinte, pigarreia, dá uma balançada
no corpo e continua:
- E como eu gostava de olhá-la...
Muitas vezes eu ficava escondido, recostado no pilar da caixa-d’água que ficava
em frente à casa de Elisa. E o dia ficava ainda mais lindo quando ela apontava
no portão. Sempre com o fiel escudeiro: o irmão. Com o tempo Elisa
transformou-se numa moça mais recatada, passou a usar óculos, não falava mais
tão alto, mas continuava tagarela. E continuava com o mesmo encanto de menina.
Irradiava vida. Quando completei 21 anos, descobri que Elisa tinha 14. Ela
estava terminando o curso ginasial e preparava-se para continuar os estudos em
outra cidade. Senti uma tristeza imensa quando soube que ela, no ano seguinte,
não estaria ali encantando as minhas manhãs. Os meus dias ficariam sem o brilho
daquela presença. E antes que o ano terminasse, meu irmão foi me buscar. Já
havia sido promovido no banco onde trabalhava, estava cursando História. Ele
estava feliz da vida! E vim para São Paulo... E trouxe comigo o amor por Elisa.
Fiz um teste, passei por entrevista e fui admitido pelo mesmo banco. Passei a
trabalhar no Departamento de Marketing. Tudo novo, cheio de números, de
estatísticas, e de pouca conversa... Morávamos em um minúsculo apartamento no
centro, perto da Praça da Sé, bem próximo ao banco. Passei a cursar o ensino
médio no período da noite. Em momento algum deixei de pensar em Elisa. Ela
povoava os meus pensamentos na caminhada de ida e volta ao trabalho, nos
intervalos, na ida e volta para a escola, nas noites insones, nos finais de
semana quando eu faxinava o apartamento, quando cuidava das roupas, quando
preparava a comida. Pensava no rostinho dela, o que estaria fazendo, com quem
estaria... Quanta saudade! E os meses passaram lentamente, os anos...
Elisa continua ali, mergulhada na
história, um pouco confusa. As palavras de Hugo misturam-se às lembranças que
lampejam na sua memória, e parece que tudo vira uma coisa só. Olha o rosto de
Hugo, os cabelos brancos, as mãos enrugadas. Não conhece aquele homem, tem
certeza disso. Não conhece aquele rosto. Por que tudo que fala é tão familiar
para ela?!
Hugo leva as mãos aos ouvidos, pressentindo
o barulho ensurdecedor do trovão, após um relâmpago devastador que clareia todo
o saguão às escuras. E realmente ele vem. Depois de um estalo assustador, o
trovão parece tremer o chão. Há gritos, choro de crianças, pessoas rezando.
Quando tudo serena, Hugo vira-se para Elisa e pergunta:
-
Continuo?!
Tentando represar a ansiedade, mas com
pouco sucesso, ela responde:
-
Por favor, Hugo, termine de contar a sua história.
- Elisa, mas ainda falta muita coisa a
ser contada...
- Hugo, teremos tempo, não se preocupe.
- Então, vamos lá... Durante as férias
eu voltava à vila. E nos poucos dias que passava por lá, procurava notícias de Elisa.
Conseguia poucas informações. Nunca comentei sobre o meu amor com ninguém, nem
mesmo com o meu irmão. Soube que ela estava namorando, que gostava muito de
dançar, que continuava alegre, que tinha muitos amigos... E a vi em um Natal.
Do mesmo jeitinho, com a mesma meiguice, com a mesma alegria, irradiando vida.
Silêncio... Elisa nem se mexe. Nem se
lembra dos cuidados com a mala, nem percebe se as rodinhas ainda estão a tocar
os seus pés, nada tem importância, apenas a conversa lhe interessa. Os miolos
fervilham, sua alma está misturada.
Hugo retoma:
-
Quando terminei o ensino médio, cursei Administração de Empresas. Meu irmão já
havia terminado o curso de História, feito concurso público para lecionar na
rede estadual de ensino, e escolheu o cargo na cidade de Cândido Mota, cidade
que ficava perto da nossa vila, portanto, perto dos meus pais. Por lá conheceu
minha cunhada, formou família, e ali ficou estabelecido até a sua morte. Eu
continuei aqui, na capital. Só, absolutamente só. Não me interessava por
ninguém. Elisa ocupava o meu pensamento, o meu coração. Dedicava-me ao trabalho
e ao curso de maneira intensa. Tornei-me o responsável pelo Departamento de
Marketing. No último Natal que passei com toda a minha família, vi Elisa novamente.
Havia terminado a faculdade e iria se casar. Quase endoideci... Mas, o que eu
esperava?! O que poderia acontecer de diferente?! Ela nunca soube do meu amor,
nunca me olhou, acho que nunca me viu... E essa foi a última vez que a vi. Quando
retornei ao trabalho, fui convidado pela Diretoria do Banco a assumir um novo
cargo. Não seria no Brasil, seria em Barcelona, em uma nova agência que lá seria
instalada. Foi uma surpresa sem medida! De início preocupei-me com o idioma,
mas logo fui convencido pelo meu gerente de que isso não seria empecilho, porque a agência seria criada para atender, de
maneira mais eficaz, os brasileiros que lá viviam. Falei com a minha família, e
depois de muito choro e de muitas bênçãos, parti para Barcelona.
- Elisa, você ainda está acordada? Esse
palavrório todo não a fez dormir?
Elisa continua atenta.
Percebe que essa parada fora providencial. Ele está com a voz embargada, e
propositalmente, tentando controlar os sentimentos, interrompe a narrativa. Igualmente
emocionada, e relutando em não mostrar, Elisa responde:
-
Não, Hugo. Não estou dormindo... - Intrigada com a situação, e sem entender
a causa daquele silêncio embaraçoso para ambos, Elisa pede a Hugo que continue.
- Está bem... A viagem foi difícil, já
estava com o peito cheio de saudade antes mesmo de partir, e o pouco que eu
cochilava, acordava sobressaltado, com uma sensação de solidão extrema, fechava
os olhos e via o rosto de Elisa, da minha mãe, da minha irmã... E depois da
chegada a Barcelona, a adaptação foi ainda mais difícil. Não só pelo idioma,
mas principalmente pelo clima. Cheguei lá quando já havia pouca neve, mas o
frio era assustador! Para ser mais exato, levei mais de dois anos para me
sentir confortável naquele país. E quando isso aconteceu, passei a visitar
lugares, a viajar pelas cidades próximas. E em um desses passeios, numa visita
à cidade de Badalona, dentro da província de Barcelona, eu conheci a minha
Carmen. Era começo do verão, o sol estava fraquinho naquela manhã, a praça
estava repleta de crianças brincando nos balanços, nas gangorras. E eu a vi,
sentada em um banco, lendo um livro. Sentei-me ao lado. Ela tinha a pele
infinitamente clara, cabelos cor de mel, esvoaçantes, e
quando a cumprimentei, olhando o seu
rosto de frente, fiquei encantado com a cor dos olhos. Azuis como o céu que ao
fundo emoldurava o seu rosto.
-
Cansada de escutar-me? – pergunta Hugo.
Elisa leva um tempo para perceber que
ele está falando com ela. Toda sem jeito recompõe-se, pede desculpas e diz a
Hugo que não está cansada, que está fascinada pela história.
-
Verdade, Elisa?! Não está aborrecida com tanta falação?!
- Não, Hugo! Eu ficaria a minha vida
toda ouvindo...
Hugo pigarreia novamente, pensa por
alguns segundos procurando o fio do novelo, e volta:
- Bem, a nossa timidez era tamanha que
ficamos calados por mais de dez minutos. Aí comecei a falar, e ela logo
percebeu que eu não era espanhol, pelo sotaque, é claro! De pouco em pouco ela
erguia os olhos para o lado do balanço. E ali descobri que ela era mãe de duas
crianças, Lúcia, de três, e Pablo, de cinco anos. Soube que era viúva. Perdera o marido
havia dois anos, num acidente de trabalho da construção civil. Carmen era
professora, amava a profissão, gostava de ler, gostava de trabalhos manuais.
Para dizer a verdade, naquele dia ouvi mais do que falei. E enquanto as
crianças brincavam, conversamos por mais de uma hora. Os filhos dela eram
lindos! Parecidos com ela... Quando as crianças a chamaram querendo voltar para
casa, tudo foi tão tumultuado que mal nos despedimos, e eu fiquei sem saber o
endereço ou o telefone dela. Voltei a Badalona na semana seguinte, mas não a
encontrei. E numa terceira volta, encontrei Carmen na mesma praça. Dali em
diante, passamos a nos falar frequentemente, começamos a namorar e depois de um
bom tempo nos casamos. Passei a morar em Badalona, e viajava todos os dias.
Confesso a você que muitas e muitas vezes, nas viagens de ida e de volta, nos
momentos de silêncio, eu me lembrava do rostinho de Elisa. Mas de outra
maneira, de um modo sereno, melancólico. Eu estava feliz com Carmen e com os
filhos que eu abracei. E fui muito feliz! Não tivemos outros filhos.
-
E você nunca mais veio ao Brasil?! Só agora? – pergunta Elisa.
-
Não, Elisa! Voltei aqui quando perdi meu pai, em 1988. Depois, quando perdi
minha mãe, em 1993, e em 1998, quando meu irmão também partiu. Depois do meu
casamento, meu irmão e minha irmã sempre nos visitavam. Álvaro, meu irmão,
professor de História, apaixonado pela Europa, aproveitava as férias de julho
para conhecer vários países, e Emília, minha irmã, muito ligada a mim, nunca
voltava com ele. Esticava a temporada em nossa companhia, enquanto existia
calor. Quando o inverno se aproximava era chegada a hora de voltar. Ela não
tolerava o frio europeu. E após um último retorno, inesperadamente, ela também
partiu. Nessa ocasião, não vim ao Brasil. Queria guardar na memória o rostinho
de Emília cheio de vida, alegre entre as panelas e as conversas com Carmen na
cozinha da nossa casa. E retornei agora.
- E quando esteve aqui, não procurou
saber de Elisa?!
- Não, não procurei. Mas, mesmo não
procurando, soube que ela não era feliz.
Elisa fica apreensiva. O que ele
contaria agora?
De repente, a energia voltou. Só então
Elisa percebe que a chuva havia dado uma trégua. Esteve tão ausente dali por
certo tempo, precisa tomar o tino e relembrar que está no saguão do aeroporto,
que irá para Fortaleza... Divaga, os seus pensamentos visitaram lugares,
conversas, situações adormecidas... Agora, com a claridade reinando no saguão,
Elisa percebe que o rosto de Hugo parece abatido, não tem o mesmo entusiasmo
que ela vira durante a conversa no skype.
-
Hugo, e hoje, você é feliz?
- Sim, Elisa. Sou um homem feliz. Vivi
intensamente a vida em família, nossos filhos se casaram, nos deram netos
maravilhosos que eu amo incondicionalmente, são pessoas felizes. Eu e Carmen estamos
aposentados, somos companheiros inseparáveis, cúmplices em todos os momentos. Um
grande amor nos une, fizemos uma boa história juntos, temos boa saúde, apenas a
idade está avançada, mas por isso devemos agradecer, não é mesmo?
De repente, as chamadas de voos
retornam, e Hugo precisa se encaminhar para a área de embarque.
-
Hugo, você ficará para sempre na
Espanha?!
-
Você quer dizer, depois que eu morrer, Elisa? Sim, ficarei lá, junto dos meus
últimos amores. É mais prático, mais sensato, e lá estarão os meus filhos, os
meus netos, bisnetos...
Elisa se cala. Hugo se coloca em pé,
balança um pouco as pernas, como para desentorpecê-las, parecem meio dormentes.
Ajeita o casaco, coloca a maleta sobre a poltrona, vira-se para o lado e diz:
-
Elisa, você poderia me dar um abraço?
De início ela não compreende, mas
coloca-se prontamente de pé. Hugo se aproxima e passa os braços em volta do seu
corpo num caloroso abraço. Afetuoso, apertado, demorado, quase a ergue do chão.
E ela se entrega ao abraço.
Visivelmente emocionado, Hugo
recompõe-se, e diz:
-
Menina Elisa, que a sua vida seja muito feliz. Que os anos pela frente sejam
plenos de alegria, de amor, de paz.
-
Obrigada, Hugo! Eu desejo o mesmo a você... Tenha uma boa viagem!
Hugo coloca-se bem perto, e num gesto
delicado toca-lhe o rosto com a mão, como se acompanhasse o contorno da sua face.
E vira-se para o portão de embarque.
Lá, de longe, faz um aceno de
despedida... Elisa está emocionada. Levanta o braço e acena. Depois que ele
ultrapassa o portão e some de vista, joga o corpo sobre a poltrona. Fica um tempo
olhando a entrada de embarque. Sente um desconforto no peito, uma confusão de
pensamentos. Tem certeza de que nunca viu aquele rosto antes, que nunca
conversou com aquela pessoa antes, mas tudo que ele disse sobre a vila, os
costumes, as pessoas, era exatamente igual a tudo que vivera.
Fica inquieta. Precisa movimentar-se um
pouco, arejar as ideias. Ergue-se, pega a mala e sai em direção à janela. Olha
o céu carrancudo, logo será noite. Sente vontade de chorar. Mas, por que
chorar?! Começa a relembrar toda a conversa com Hugo. Ele falava da vila onde
ela nasceu e cresceu. Ele disse que a diferença de idade entre eles não era
maior que sete anos, e falou com convicção. Ele falou do escritório de
contabilidade que ficava ao lado das Lojas Riachuelo, cujo guarda-noturno era o
Seu João. Que a Elisa que ele via todos os dias morava em frente à caixa
d’água, que ela estava sempre acompanhada do irmão. Que não era bonita, que era
magra, que era alegre, que era tagarela. Que aos 14 anos foi estudar em outra
cidade...
Meu Deus, ele falava dela!
Elisa segue rapidamente para a área
central do saguão. Coloca-se em frente ao painel de controle dos voos e procura
a partida para Barcelona. Tem muita dificuldade para enxergar, a vista anda
fraca. Depois de alguns minutos encontra o voo, e o aviso de “embarque
concluído”. Sente um aperto no peito... Por
que não perguntou a Hugo se era dela que ele falava? Por que ele não deu a ela
a oportunidade de se desculpar, de explicar que não sabia daquele amor, que não
queria magoá-lo?!
Nesse instante é feita a chamada para o
check-in do voo para Fortaleza.
Elisa, mecanicamente, dirige-se ao balcão. A voz da atendente serviu para
trazê-la de volta à realidade. Delicada, solícita. Talvez tenha percebido que
Elisa estava perturbada, e mostra-se extremamente amável. O voo sairá dentro de
uma hora. Com a bagagem despachada, Elisa sente-se mais livre. Toma um suco e
volta para o saguão. Procura pela poltrona onde estava sentada, e lá novamente
acomoda-se... Olha para o lado. A poltrona vazia... Hugo está a caminho de
casa. O que estará pensando?! Começa a ponderar com mais clareza tudo o que
havia acontecido ali, e percebe a generosidade de Hugo. Ele queria que ela
soubesse que foi amada, que foi querida. Queria que ela sentisse que havia sido
importante na vida de alguém. Ela não lhe devia qualquer explicação, qualquer
escusa. Por que iria pedir desculpas a ele?! Não fora culpada de nada, nunca
soube de nada. Ela havia sido protagonista de uma história de amor que não
aconteceu, uma história que ela não conheceu. Elisa só esteve presente ali, no
fechar das cortinas, naquele último ato.
Neste instante, o serviço de som do
aeroporto faz a chamada para o voo 3322 com destino a Fortaleza. Elisa se
levanta, olha a poltrona ao lado. Tenta vislumbrar a figura de Hugo, mas tudo é
muito nebuloso no seu pensamento. Segue a caminho do portão de embarque.
Vira-se novamente antes de seguir pelo corredor. E, comovida, acena...
Regina
Ruth Rincon Caires
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