A
CARTA QUE EU QUERIA ESCREVER...
Hoje, 07 de agosto de 2018.
Amada menina,
Não
posso me dizer saudosa porque estou sempre muito próxima a você, mas acho que
soube bem pouco sobre mim. Esta é a razão de não querer partir, um dia, sem lhe
contar algumas coisas. No tempo, só no tempo, estamos distantes.
Menina, aconteceu tanta
coisa nova! Tanta modernidade! Lembra-se da boneca de milho?! Dos caquinhos de
louça?! Das bolinhas de barro?! Ninguém fala mais nisso. Agora, se você pergunta para
uma criança se ela quer brincar com estilingue, ela corre, acha que você é doida!
Lembra-se do medo de alma penada, de assombração?! Acabou... Agora, o medo é de
monstros, de figuras gelatinosas... Ah! Você não conheceu gelatina, não vai
compreender... Criança não brinca mais na rua, não pode nem pensar em ir
sozinha na casa do amigo! Tem roubo, tem assalto, tem sequestro... O que é
sequestro?! A criança é levada como se fosse um objeto e quem a levou pede
dinheiro para devolvê-la. E muitas vezes, mesmo pagando, não a devolve.
Devolve, sim... Morta.
Mas,
não fique assustada, ainda existe muita coisa boa. O que melhorou muito foi a
conversa. A criançada agora pode prosear, e como fala! Apesar de que, com você,
não foi diferente, falava pelos cotovelos, misericórdia! A molecada é esperta,
barulhenta. Dá de dez a zero naqueles bananas do seu tempo! E apareceu um trem
chamado computador! Menina, é o bicho! Fico imaginando que, se ele tivesse
aparecido no seu tempo, acho que você teria arrasado! Ou teria morrido de
susto... E esse computador apareceu para revirar o mundo! Está tudo de perna
pro ar, virou febre contagiosa. No início, era enorme, agora, você pode carregá-lo
na palma da mão. Você não sabe o que é computador, né?! É um trem que parece
uma televisão... Não adianta, você não sabe o que é uma televisão... Vou tentar
explicar: televisão é meio parecida com o rádio. Só que na televisão você pode
ver o homem falando, a mulher cantando, o produto da propaganda. Você enxerga o
que está ouvindo, entende? E o computador é uma televisão, um rádio, um jornal,
uma revista, tudo junto, misturado. E você pode se intrometer, pode dar
opinião, pode elogiar, pode xingar, pode conhecer pessoas, pode tudo. Ou quase
tudo.
Muita
informação, não é?! Ficou zonza?! Acalme-se! Respire, inspire, respire, inspire... Isso... Pois bem, este danado de computador, agora, está num
aparelhinho minúsculo que tem o nome de celular. Ah! Antes de falar do celular, preciso
explicar o que é um telefone. É um aparelho, um negocinho que você usa para
falar com alguém que está longe, parecido com o rádio. No rádio, o homem falava
com a gente, lembra-se?! A gente ouvia, mas não podia responder para ele. Ele
não ouvia a nossa voz. Com o telefone, ele ouve. Ele fala e escuta. O celular é
um telefone moderno. Além de servir para falar e ouvir, ele faz tudo, é um
computador de bolso. Uma doideira, menina! Tanta modernidade que, quando vou
deitar, a cabeça parece um balaio de gato. Se a gente não cuidar, fica falando
sozinha... E ainda tem uma nova doença que tem um nome alemão, mas nem vou lhe falar
sobre ela... Deixemos isso de lado...
Então, essas novidades
cansam um pouco, mas viram cachaça. Sei. Você nunca experimentou cachaça, mas
lembra como o avô ficava alegrinho quando tomava umas talagadas?! É a mesma
coisa, aquece, anima, desinibe.
Na verdade, acho que não
queria que você tivesse vivido essa doideira toda. Foi tão bom do jeito que
foi, não é mesmo?! Era prazeroso ficar sentada na forquilha do pé de
cajá-manga, lá no alto, muito acima dos telhados, olhando o nada, ou o tudo.
Acompanhar, de longe, como se fosse onipresente, o corre-corre dos atarefados.
As vistas alcançavam os terreiros das casas, a plantação de café, os colonos. E
se encantavam com as revoadas dos passarinhos. E os ouvidos se abastavam do
silêncio generoso, necessário. Bastava ficar ali, sem compromisso, sem qualquer
cobrança. Hoje, tem gente que paga caro para tentar sentir isso, sabia?! O
negócio chama “ioga”. Você se refestelava, de graça e sem hora marcada.
E a cama quentinha, dormindo
com os irmãos, amontoados? Que gostosura, não?! Hoje, ainda existe. Mas não há
cama para todos. Há muitas crianças dormindo no chão, sem coberta quentinha,
sem quarto, sem casa... Ao relento. E gente grande também! Você não viu isso...
E aquele monte de primos?! Como você se divertia... Era a mais encrenqueira
deles, exigente, sabe-tudo, mas como amou aqueles pequenos... Uma família só,
tudo baralhado. Isso ainda existe, mas o número de primos está muito diminuído.
A carestia andou controlando tanta parição. As parteiras trabalham menos. Não!
Agora não são parteiras. Quase não existem por aqui. O negócio passou para o
hospital. Bruguelo nasce de corte na barriga. Uma maluquice!
A escola continua firme,
você ia gostar. Tem para todo lado! Cheia de paredes coloridas, de enfeites.
Uma criançada que não acaba mais... E, em algumas, as crianças ficam lá o dia
inteiro! Acho que você adoraria!!! Ou não?!
E as avós! Lembra-se de como
eram, de como você foi cuidada, protegida? Pois é, hoje, tudo continua. Sinto que
é o mesmo amor, tem a mesma intensidade, mas a maneira de demonstrar mudou
muito. Não é mais só aquela conversa com os olhos, aquele falar calado, aquele
proteger velado. Agora o amor, além de tudo isso, é falado em voz alta. Sem
vergonha, sem barreira, sem inibição, de cara limpa, frente a frente. E é livre
abraçar, beijar, amassar, apertar. Ficou melhor! Você iria adorar! Talvez, se tivesse sido assim, você teria sido
ainda mais forte. E eu também.
Mas, menina, se não foi
assim, pode se sentir desforrada. Já sou avó! Eu me lambuzo diariamente deste
amor para tentar abastecer você. Falo mil vezes “eu te amo” de boca cheia, de
coração transbordando... E amo... E é bom, acho que é das melhores coisas da
vida. Melhor que isso, só a paz que sinto quando vejo a mansidão nos olhos dos
meus netos. A mais novinha é parecida com você, sabia?! Esperta, geniosa,
exigente... Um azougue!
Bem, agora, a conversa
final, aquela que me fez procurar um papel e tentar escrever todo o sentimento
de gratidão que tenho por você. Não vou esconder que você foi trabalhosa, que
me fez pular miúdo, que, muitas vezes, me fez passar pelo buraco da agulha.
Mas, do fundo do meu coração, você foi a minha fortaleza, das suas lembranças
eu pude forrar a cama e repousar em noites de solidão, e foram muitas. Da sua
alegria, da sua vontade de viver, tirei forças em momentos que qualquer um
sucumbiria. Da sua perseverança, aprendi a não desistir dos sonhos, e ainda são
muitos... Tentei levar a vida com dignidade e, garanto a você, que lutei para não
te envergonhar. Se eu fiz coisas erradas?! Claro que fiz! Mas nada que não
pudesse ser reparado, acredito eu. Menina, obrigada por tudo! Obrigada por ter
vivido tão plenamente. Obrigada por ter armazenado tantos bons pensamentos,
tantos bons sentimentos. Sou o resultado de tudo isso.
Com todo o meu amor...
Você, aos 64 anos.
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