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domingo, 22 de dezembro de 2019

CINE SANTA MARIA






CINE SANTA MARIA

O cinema ficava na rua principal, rua de terra batida, bem no centro da vila. Em frente havia a “Toca da Onça”, um botequim escuro, com portas de madeira de duas folhas, prédio sem janelas, sujo, de ar fétido, onde basicamente se vendia bebida destilada. Ali, naquele boteco, os bebuns amanheciam e anoiteciam encharcados de pinga, conhaque, gin, vodca, vermute... Não me lembro de ter visto alguém ali consumindo cerveja.
Ao lado do boteco era a venda do meu pai, e nos fundos ficava a nossa casa que fazia parte do prédio do armazém. Como se fosse um prolongamento da venda. Fica claro que eu, praticamente, morava grudada ao cinema. Bastava atravessar a rua. Quando não podia ir às sessões, porque muitas vezes estas eram proibidas para crianças; no silêncio da noite, eu sentava no degrau junto à porta fechada do armazém, e ouvia, nitidamente, as notícias veiculadas antes do filme. Conseguia ouvir o noticiário esportivo, as músicas, as trilhas sonoras dos trailers, enfim, ouvia tudo.
Quanto às notícias, no cinema sempre chegavam com muito atraso. Quando lá dizia que uma determinada pessoa, artista, político ou qualquer outra celebridade estava doente em estado grave, com toda certeza, a pessoa já havia morrido. As notícias, repassadas em tempo real, chegavam através do “Repórter Esso”, programa acompanhado diariamente nos rádios da vila. Quando o filme começava era possível ouvir tudo, mas eu não entendia nada. Os filmes proibidos, na grande maioria, eram estrangeiros: americanos, franceses, portanto, falados em outras línguas. Aí fazia falta a legenda. Não entendia o que era falado, mas pelo título do filme, a minha imaginação voava. Ficava ali até que o sono viesse. E muitas vezes, quando a trilha sonora era agradável, eu esperava o final da sessão, e assim podia ver as pessoas deixando o prédio.
Ah! O prédio...
O Cine Santa Maria funcionava num salão comum. Quatro paredes caiadas de branco, telhado de madeiramento simples, telhas comuns, sem forro, chão de tijolos crus e surrados. Muitas vezes, com a chuva forte, algumas goteiras causavam um corre-corre danado dentro do cinema. E o mais crítico: não havia banheiro. Se alguém numa emergência precisasse usar um banheiro, a única saída era correr para o outro lado da rua, nos fundos do botequim. Era um flagelo! E o pior é que, quando alguém saía intempestivamente da sessão, todos os demais já ficavam sabendo da sua emergência. Um desconforto! Situação constrangedora. Mas, valia a pena...
A porta de entrada do cinema era na lateral do prédio. Do lado de dentro, na parede da frente que ficava rente à calçada, havia um grande painel forrado de tecido branco, feito um lençol. Ali eram projetadas as imagens do filme.
Havia apenas duas janelas na parede contrária à porta de entrada. As cadeiras de pau, com assentos de palha de milho trançada, eram amarradas umas às outras com cordas para que ficassem alinhadas, e dispostas em duas fileiras, de maneira que formavam um corredor central. No fundo desse corredor central, entre as duas fileiras de cadeiras, havia uma mesa rústica, e sobre ela ficava o projetor de filmes.
Na vila, apenas uma pessoa estava habilitada a operar o projetor. E, por isso, era muito respeitada. Era o passador de filmes. Ficava sentado em um banco colocado junto ao canto da mesa, com o corpo rente ao projetor, e ali, lenta e intermitentemente, ia rodando a manivela que girava o rolo do filme. Sempre na mesma cadência, na mesma velocidade.
Os filmes, semanalmente, chegavam através das antigas jardineiras, com os bagageiros na parte de cima, a céu aberto, e vinham acondicionados em latas circulares, quase sempre cobertas de poeira vermelha da estrada. O passador de filmes era responsável por recebê-los e, após as projeções, despachá-los para outra cidade, conforme orientação da distribuidora.
As sessões aconteciam sempre aos sábados, domingos e feriados. Nos domingos e feriados quase sempre havia matinês. Nelas eram apresentados filmes para os pequenos e adolescentes. Se bem que nessa época não se falava em adolescente. Eu conhecia crianças e adultos. Jovem bem encorpado, sempre com calças compridas, era adulto, e menos encorpado, com calças curtas, era criança. Menina que brincava na rua, que brincava na escola, era criança, e menina que não corria na rua, cheia de pudor, que pensava em namoro, era moça, adulta. Simples assim.
Muitos filmes, na época, eram promovidos pelos próprios artistas. Eles viajavam em excursões itinerantes pelas cidades do interior onde os filmes seriam exibidos. Eu me lembro de ter visto pessoalmente, no final da década de 1950, início da de 1960, atores como Zé Trindade, Ankito, cantores como Tony Campello, Celly Campello, Carlos Gonzaga, Hebe Camargo. Não me lembro de ter visto Oscarito e Grande Otelo, mas há quem diga que eles estiveram por lá. Era uma festa olhar as celebridades almoçando no hotel da Dona Lídia. A porta do refeitório ficava apinhada de cabecinhas curiosas, de pescocinhos agitados, e os olhos corriam desde os pés até o alto da cabeleira de cada um. Tudo era novidade, principalmente as roupas que vestiam...
Esporadicamente havia a apresentação de algum seriado, e então as sessões de cinema aconteciam às quartas-feiras, com os episódios sendo projetados após o final do filme principal, ocupando mais ou menos uns vinte minutos. Geralmente, a aventura se estendia por dez capítulos, o que preenchia nossas expectativas por mais de dois meses. E era muito bom! A discussão sobre o desfecho virava o assunto da vila, hipóteses e hipóteses sobre o que aconteceria no próximo capítulo. Os seriados eram sempre bang-bang, tiroteio para todo lado. Costumava-se dizer que no final só se salvavam: o mocinho e o cinegrafista. E, demorou muito até que eu descobrisse o que era cinegrafista.
Quando preparava a apresentação, o passador de filmes ficava um bom período da tarde dentro do cinema. Pelo pouco que eu conseguia enxergar pela janela, empoleirada em uma pilha de tijolos quebrados que arranjei, percebia que ele usava uma tesoura, e ficava passando o filme de um rolo para o outro. De repente, parava, olhava a fita contra a luz, e, às vezes, cortava um pedaço e grudava novamente. À distância, nunca compreendi tudo que ele fazia ali, mas fiquei com a certeza de que aquelas falhas que apareciam durante a projeção, eram frutos daquela lida prévia.
Muitas vezes, assistindo ao filme, a projeção dava um pinote, apareciam borrões na tela, e pulava um pedaço da história. Todo mundo chiava, mas o filme seguia. De qualquer maneira, dava para entender a trama. E os ânimos se acalmavam. Enfim, era uma diversão sagrada.
O passador de filmes sempre colocava pedaços e mais pedaços cortados da fita dos filmes no lixo. Eu ficava de olho. Quando ele descartava o saco de papel lotado com os pedaços de filme, eu, na espreita, olhando de um lado e de outro, abraçava o saco de papel e saía correndo em direção de casa. Sentada debaixo do pé de manga, eu passava horas olhando aqueles pequenos e incríveis negativos quadradinhos contra a luz. Eram cenas dos filmes. Muitas cenas eu já conhecia, eram de filmes já vistos, e outras eram completamente novas. Aí, era um sonho... E eu sonhava acordada.
Tempos depois passou pela vila um fotógrafo que tirava retratos e colocava os negativos num pequeno cone lapidado, com uma pequena lente de aumento. Uma foto para ser vista por um monóculo. Quando essa danada invenção apareceu, pude olhar com muito cuidado cada um dos pedacinhos das fitas de filmes que guardei durante muitos anos. E aí, vendo tudo com mais nitidez, separei as cenas, filme por filme. Um trabalho que levou muitos meses, que cansava a vista, mas que foi um deleite.
As sessões de cinema começavam sempre às oito horas. Os rapazes e as moçoilas geralmente chegavam à praça por volta das sete. Roupas caprichadas, incrivelmente engomadas e passadas. O ar recendia sempre aos mesmos perfumes. As moças usavam Tabu, ou Flor de Maçã, e os rapazes recendiam à brilhantina Glostora, e os mais precavidos usavam quina de petróleo. Era tanta brilhantina, tanta quina nos cabelos que mesmo que eles ficassem de cabeça para baixo, nenhum fio sairia do lugar. A cabeleira ficava pastosa, brilhante, com a marca dos dentes do pente crivada em toda a cabeça. Parecia cabelo de bibelô! Sabe o que é bibelô?!
Eu chegava cedo à sessão. Assim que a bilheteria se abria eu era a primeira a comprar o ingresso, e, aberta a porta, eu deslizava pela multidão e chegava à frente. E me sentava na primeira fileira, na cadeira que dava para o corredor central, de onde vinha o foco do projetor. Ali, eu ficava girando o corpo pra lá e pra cá, observando quem estava chegando, onde se sentava, quem era a companhia, que roupa usava... Como era curiosa! Era?!
Mas, nem todo mundo era fissurado assim. Havia aqueles mais sossegados que, querendo aproveitar o footing até o último minuto, ou esticar a paquera por mais algum tempo, chegavam ao cinema com a projeção já iniciada.  Às vezes ainda estava no noticiário, ou nos trailers, mas, muitas vezes, os retardatários chegavam quando o filme já havia começado. Aí era um bate-boca danado!
Os cabeçudos, descuidados, atravessavam pelo corredor central, cruzando a frente do foco do projetor. E o que acontecia? Na tela ficava projetada a sombra da cabeça do infeliz, as orelhas, e, às vezes, o corpo todo. E atrapalhava o filme! Era um assobio uníssono, e também sobravam palavrões. Coitadas das mães desses retardatários! Muitos ficavam roxos de vergonha. Isso, inevitavelmente, acontecia em todas as sessões. Sem contar aqueles que faziam isso por pura malandragem, e que não se importavam com a vaia, com os assobios, e muito menos com suas mães. Até gostavam! E o passador de filmes ia, calmamente, girando a manivela, sempre no mesmo ritmo, do começo ao fim do espetáculo. E que espetáculo!
Durante anos, nesse espaço improvisado, rústico, sem qualquer conforto, onde apenas se somavam as fantasias, os sonhos, a perícia e a boa vontade do passador de filmes, vivi momentos encantados.
Com o advento do cinemascope, o mundo vivendo o apogeu da sétima arte, um visionário da época empreendeu-se por este meio e construiu várias salas de cinema pela região. E a vila, na esquina da praça da matriz, acompanhou a construção do Cine Ouro Verde. Gigante, moderno, com banheiros para homens e para mulheres, poltronas estofadas, tapetes vermelhos nos corredores, e o projetor ficaria no mezanino, portanto, cabeçudo nenhum atrapalharia o filme.
Até que se construísse o novo prédio, o Cine Santa Maria permitia que seus frequentadores fossem se despedindo. E eu vivi cada momento dessa despedida, sentindo o gosto da saudade... Em muito pouco tempo, as portas do salão encantado foram fechadas. E o Cine Santa Maria saiu de cena, passando a existir apenas na lembrança.
Fechando os olhos, consigo sentir a textura da palha de milho trançada comprimindo minhas pernas, da mesma maneira que sentia quando, já com o corpo cansado de ficar na mesma posição, eu assistia, inebriada, aos antigos seriados.                                           

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