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domingo, 22 de dezembro de 2019

FLOQUINHO






FLOQUINHO

       Tarde monótona... Calorenta e preguiçosa.
       A “Sessão da Tarde” mostra um filme que já vi, pelo menos, quatro vezes. Falta de imaginação! Parece que o programador de TV se esquece daqueles que estudam de manhã. Repete os filmes com tamanha frequência que, em alguns deles consigo, em minha mente, antever a cena com minúcias, com detalhes. Sou capaz de descrever a roupa que a protagonista usará em seguida, o modelo, a cor. Esse programador não bota fé na minha memória! Acho que nem na memória, nem no meu “leque” de opções!
       Hoje ele até tem razão. Estou mesmo sem opção. Sozinha aqui na sala, meu irmão na escola. Não tenho a mínima vontade de desenhar, que é meu passatempo predileto, nem de fazer meus deveres, e para ser sincera, não quero ver filme algum.
       Com esse calorzinho, até o sofá sempre aconchegante, perde seus encantos. Não me ajeito nele. Está quente! O jeito é pegar o almofadão e me esticar no chão mesmo.
       Ainda bem...
       Barulho de carro na garagem. Deve ser meu pai. Está na hora dele chegar do trabalho. Menos mal! Pelo menos terei com quem conversar.
       - Baixinha!
       É a voz do meu pai. Que será que está acontecendo? Ele está me chamando lá de fora, e sua voz parece um pouco alterada! Será que ficou sabendo do meu ponto negativo em Português por não ter feito a tarefa de ontem?! Deus do céu! Acho que vem bronca por aí!
       - Já vou, pai!
       Respondo e corro para abrir a porta. Tenho que parecer solícita, gentil. Se for bronca, ele ficará um pouco sensibilizado com meu gesto. Que Deus me ajude!
       Ele foi mais rápido. Antes mesmo que eu chegasse à porta, ele estava diante de mim. Uma cara estranha! Parece calmo, mas seus olhos mostram ansiedade. Droga! Como é duro estar com a consciência pesada! Talvez ele nem esteja sabendo do meu ponto negativo, mas dentro da minha cabeça é só isso que fervilha.
       - Baixinha, trouxe um presente pra você!
       Graças a Deus! Ele ainda não sabe... A bronca vai demorar um pouco mais a chegar.
       Preciso de alguns segundos para me recompor, organizar minhas ideias, acalmar meus ânimos. Estava aflita com a expectativa de uma bronca e recebo um presente! Ainda bem que ele nem percebeu o meu sufoco.
       Fixo os olhos na caixa de sapatos que ele traz nas mãos. Que será que tem dentro?! Deve ser alguma fruta. Ah! Já sei! Morangos!  Sou vidrada em moranguinhos, e ele sempre os traz. É bem verdade que nunca os trouxe dentro de uma caixa de sapatos, mas pode acontecer...
       - Vamos ver se você adivinha?!
       Enquanto fala, suspende a caixa de maneira que não consigo tocá-la, e nem perceber o que há dentro.
       - Moranguinhos?
       - Está frio, gelado... Longe disso...
       Bem, não sendo fruta, o que pode ser? Sapato eu sei que não é. Isso quem compra é minha mãe.
       - Não sei, papai. Não tenho a menor ideia.
       Percebendo que eu não descobriria a surpresa, ele abaixou a caixa lentamente. Notei que a tampa estava toda esburacada, e pensei num passarinho.
       Nem tive tempo de abrir a boca, e ele retirou a tampa. Tive a visão mais linda de toda a minha vida! No canto da caixinha, uma bolinha de pelos brancos lembrando flocos de algodão, dois olhinhos negros, redondos, feito duas jabuticabas, focinho comprido, orelhas caídas... O cachorrinho mais fofo que já pude imaginar!
       Fico fascinada! Abraço a caixinha, ele ergue a cabecinha como se quisesse me cheirar. É minúsculo. Com minhas mãos sou capaz de cobri-lo todinho!
       - Posso pegá-lo no colo, papai?
       - É claro, baixinha! É seu e você saberá a melhor maneira de tratá-lo. Precisa dos mesmos cuidados de um bebê, lembre-se disso.
       Que fofura! Quentinho, indefeso, meigo, faceiro. É um cachorrinho de sorte! Cair justamente em minhas mãos?! Vai ser muito feliz, tenho certeza.
       Não poderia ter chegado numa hora melhor! Até me esqueci da chatice do filme, do calor, do programador incompetente. Tenho que providenciar uma caixa maior para ele dormir, um pratinho de leite, um paninho fofinho para forrar a caixa... Antes quero segurá-lo no colo mais um pouquinho. Meu amiguinho! Não terei mais tardes monótonas. Que se danem os filmes repetidos!
       Tenho que batizá-lo. Ele precisa ter um nome. Facílimo! Seu nome será a sua semelhança! Ele parece flocos de algodão, então seu nome será FLOQUINHO! O meu Floquinho.
       - Papai, pode dar leite pra ele?
       - Dê aos poucos, ele é muito novinho e, se beber demais, com certeza, terá cólicas.
       - Não vai ter perigo! Vou colocar só um pouquinho.
       Engraçado, ele não quer beber no pratinho. Será que com uma colherinha funciona?! Vou tentar... Não quer. Se ao menos eu tivesse uma mamadeira! Ah! Já sei! Vou usar o conta-gotas. O safadinho adorou a ideia! Preciso da paciência de Jó... Reabasteci o conta-gotas cinco vezes!
       Como é lindo! Não vejo a hora de poder pular e brincar com ele. Sei que vai demorar um pouco. Por enquanto dorme quase o tempo todo. Mexo com ele para que acorde. Ergue a cabecinha, entreabre os olhinhos com a maior preguiça do mundo, vira a cabecinha para o outro lado, e dorme novamente. Acho que nem acorda, faz tudo isso dormindo.
       Com todo esse alvoroço, até me esqueci de agradecer o papai. Mas, não tem importância. Ele já viu minha gratidão na alegria. Não poderia haver presente melhor! Acertou em cheio!
       Hum! Já tem “caca” na caixinha... Se o Floquinho continuar fazendo essas coisas com esse cheirinho, tenho certeza de que mamãe não o deixará dentro de casa. Preciso ensiná-lo a fazer essas coisas na terrinha. Lá no jardim. Fica mais civilizado! Será?!
       Que bênção é o meu Floquinho! Tornou os meus dias mais completos, alegres, motivados. Na escola, fico animada, e esse ânimo faz a aula passar num instante. Conto os minutos de voltar para casa e ficar com ele. Já pensei até em levá-lo pra escola, escondido na bolsa. O problema é que penso naquelas “coisinhas” que ele faz.  Sujaria todos os meus cadernos. E penso também, que poderia chorar dentro da classe, e aí a professora ficaria uma fera! Melhor, não.
       Está crescendo e já me conhece de longe. Parece uma bolinha de algodão correndo pela casa, em minha direção. O rabinho, incrivelmente peludo, fica como hélice girando em meia circunferência. Lembra um limpador de para-brisa em ritmo acelerado. É um doce!
       Curioso! Tem os mesmos gostos meus. Adora doces, carne, morango, melancia, sorvete... O que ele adora mesmo é carinho! Não pode me ver sentada que vem todo insinuante, faceiro, esfregando-se nos meus tornozelos, pedindo colo e chamego. É só estender minha mão, e ele deita nela a sua cabecinha para que eu acaricie suas orelhas. É uma criança! Isso mesmo! Parece que sente o que eu sinto!
       Enquanto faço os meus deveres, fica deitado perto da minha cadeira. E espera. Ao menor movimento meu, ele também se levanta. Parece ser minha sombra! Tenho que ter muito cuidado para não pisar nele tamanho é o grude! Não se afasta dos meus pés. Até no banheiro ele me acompanha! Inteligente demais. Fica observando o meu banho, deitado no tapete perto da pia.
       Fico impressionada com sua percepção! Conhece o barulho do carro do papai, da mamãe, o barulho da bicicleta do meu irmão... Basta um deles chegar, no portão de casa, para que ele corra até à porta e fique arranhando o vidro. Será que pensa como eu?! Às vezes fico olhando para ele, e tenho a impressão de que ele está pensando. Pela carinha malandra dele, imagino que fica se divertindo com a ideia de que está me enganando. Não sei, mas às vezes ele tem um ar irônico. Sou capaz de jurar que meu Floquinho pensa! Como pode fazer tudo tão certinho se não pensar? Será que os cientistas já estudaram a fundo o cérebro de um cachorro?
       Não sei. Floquinho tem um ar estranho, maroto! Penso que se diverte com a minha ingenuidade. Quando estou tomando banho e noto que ele fica tombando a cabecinha de um lado para o outro, com aqueles olhinhos negros abotoados em mim, fico encabulada e, envergonhada, trato logo de fechar o box. Sei lá o que se passa nessa cabecinha!
       Seu comportamento é encantador! Não estraga as coisas, não bagunça a casa. No começo ainda arrastava meus sapatos pelo chão, mas fui ensinando que não podia, e logo ele deixou esse costume. Morre de frio quando toma banho! Mas, mesmo assim, fica calminho. Tremelicando, mas calminho. Não se importa com o barulho do secador, e é capaz de ficar meia hora em pé, no mesmo lugar, esperando que a minha mãe acabe de secá-lo e escove seu pelo. É docemente fantástico!
       Floquinho não cresce mais. Papai diz que ele já se tornou um cão adulto. Adulto... Até parece gente! Ainda tenho muitas dúvidas sobre a ciência desse animal. Não vou me assustar se daqui a alguns anos ficar comprovada a existência do sistema emocional dos cães similar ao dos seres humanos. Acho que já existe alguma coisa nesse sentido, preciso pesquisar.
       Minha mãe conta que a filha de uma amiga dela era tão agitada, tão agitada, tão irrequieta, que provocou “stress” num cachorrinho.  O bichinho não podia perceber a chegada da menina que corria se esconder debaixo da cama, e fingia estar dormindo, negando-se a brincar. Ficou tão esgotado que a única saída era se esconder! Isso, pra mim, é coisa de gente!
       É tão simples conhecer as vontades, as carências do meu Floquinho! Basta olhá-lo para saber que não é insensível, que não é destituído de sentimentos. Sei quando quer carinho, quando quer água, comida, quando quer passear. Agora sei que está se sentindo só, está querendo namorar! Isto mesmo! É adulto e está querendo uma companheira!
       Meu amiguinho, não se preocupe, fique tranquilo... Hoje mesmo falo com meu pai sobre isso. Logo, logo você terá uma parceira!

Regina Ruth Rincon Caires 


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