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domingo, 22 de dezembro de 2019

O RENASCER DA MULHER DO AGRIPINO





O RENASCER DA MULHER DO AGRIPINO

Adelaide era de uma beleza angelical!
Jovem, de pele muito clara, tinha profusas madeixas douradas, levemente encaracoladas, que emolduravam um rosto perfeito. De olhos azuis que pareciam duas contas de água-marinha, lábios rosados sempre trazendo um sorriso. Era o retrato da alegria. Moça bem criada, serena, virtuosa, e sonhadora. Educada com muito amor.
Filha única, temporã de um casamento cheio de amor. E, como dizia seu velho pai, Adelaide era a criatura que viera ao mundo para colocar-lhe sentido na vida.
Nos seus esfuziantes dezoito anos, inocente, sonhadora, enamorou-se de Agripino.
Vindo de outras bandas, Agripino era um homem bem vivido, conhecedor do mundo, e já contava com seus quarenta e poucos anos. Dono do único táxi da vila, cortejador, boa prosa, não demorou muito a cativar o coração da doce Adelaide.
E, depois de algum tempo, apesar de muito choro, de muitas preces, de muitas rezas, de muitos terços, de muitas novenas em família, ignorando todas as súplicas do velho pai; enfim, contra a vontade de todos, Adelaide acabou se juntando a Agripino.
De início foram viver na pequena casa de três cômodos que Agripino alugava desde que chegara à vila. Tudo muito simples, sem qualquer conforto.
Agripino passava o dia todo fora. Quando não estava fazendo o transporte de passageiro para outros lugares, ficava parado no ponto, no largo da igreja matriz.
Nas primeiras semanas, era essa a rotina. E Adelaide estava feliz. Preenchia seus dias com as tarefas da casa, no preparo das refeições, e esperava ansiosamente pelo entardecer, pelo retorno do seu Agripino.
Algum tempo depois, Agripino passou a não chegar ao entardecer. Passou a voltar para casa na madrugada. Sempre desalinhado, cheirando a suor, cigarro e bebida. E sempre com muito dinheiro. Notas e notas de dinheiro que eram guardadas na velha mala, debaixo da cama.
Não adiantava pedir qualquer explicação. Agripino, agora um homem de pouca prosa, afirmava que nada tinha para dizer.
Adelaide apenas observava. Aquela solidão e a falta de coragem de contar ao pai sobre a sua aflição, sobre seu descontentamento, iam consumindo a sua alegria. E, não vendo saída, resignou-se.
Em pouco tempo, Agripino comprou uma casa. Grande, bonita, a mais vistosa da vila. Toda murada, com uma grande garagem, e um quintal enorme.
Agripino mobiliou toda a casa. Móveis de primeira, tudo o que havia de melhor qualidade no mercado.
Na casa havia duas salas contíguas, imensas.  E nelas, Agripino colocou várias mesas de madeira com cadeiras em toda a volta. E só então, explicou a Adelaide que ali seria um espaço para jogos.
Ficou claro que era isso que Agripino fazia todas as noites.  Jogava cartas...
Adelaide ficou sabendo, depois de algum tempo, que antes a jogatina acontecia num salão que ficava nos fundos de uma oficina desativada, salão alugado por Agripino.
Agora, com a nova casa, o local do jogo seria ali. E foi...
Bastava o sol baixar por completo, os homens iam chegando, acomodavam-se nas mesas, e a jogatina estava instalada.
Adelaide ficava com a obrigação de coar e servir café, servir bebidas de toda sorte, preparar e servir petiscos, limpar os cinzeiros, cuidar do banheiro. E isso tudo começava ao entardecer e seguia até altas horas da madrugada.
E em tudo corria dinheiro.
A cada dia aquele ambiente tornava-se mais insuportável para Adelaide. Era uma casa que não era a sua casa. Por mais que limpasse, tudo cheirava à bebida. Parecia que tudo estava sempre enevoado com a fumaça dos cigarros, o cheiro dos cinzeiros impregnava-se nas cortinas, na madeira. E à noite, somavam-se o vozerio infindável daqueles homens, as repetidas gargalhadas, o palavreado que nada tinha com os seus modos, com a sua realidade até ali.
E Adelaide suportava.
Aos poucos, foi perdendo o viço. Não conseguia compreender o que fizera com os seus sonhos. Como não enxergara a outra face do seu Agripino. Agora sabia que ele não havia mudado, ele já era assim quando se conheceram. Apenas ela não havia percebido.
Nesta vida desregrada e triste, Adelaide teve seu primeiro filho. E o segundo. E viraram a razão da sua vida. Eram suas pérolas naquele mundo entediante. Passava os dias acarinhando seus pequenos, tirava dali a gana para a vida, e seguia adiante.
Desertara de muitos sonhos, mas precisava caminhar. A vida continuava célere, não havia outro remédio.
Durante o dia as crianças corriam pela casa toda, pelo enorme quintal sombreado por pés de jabuticaba, manga, laranja, e uma enorme parreira de maracujá. Mas, à noitinha, Adelaide os recolhia no seu quarto, e ali ficavam até adormecerem, e até que os últimos jogadores se fossem. Só então os colocava em suas camas.
E foram anos e anos iguais. Sempre na mesma lida. Ela era apenas a mulher do Seu Agripino. Confinada a servir os fregueses da jogatina.
Não demorou muito e Adelaide perdeu os pais. Primeiro a mãe. O coraçãozinho já fraco deixou de bater. Depois o pai, entristecido e solitário, partiu.
Adelaide agradecia todos os dias por Deus ter-lhe dado os dois filhos. Não ficara só...
Na vila todos sabiam do triste confinamento, mas nunca se ouviu um comentário. Era um silêncio velado. Se algum comentário foi feito, ele nunca saiu das quatro paredes.
As crianças foram crescendo, estudando, tomando rumo.
E a casa, com o tempo, foi se deteriorando. As paredes há muito haviam perdido a cor, o piso se desgastara, o banheiro encardido ficara com aspecto de abandono.
E, na mesma proporção, Adelaide foi envelhecendo.
E Seu Agripino também. O cigarro em excesso mais a bebida foram minando as suas forças. A tosse horrorosa que castigava durante toda a noite e não o deixava dormir intensificou-se de tal maneira que já não podia comer ou beber. O coitado apenas tossia.
Então, encerrou-se a jogatina.
As crianças, que já não eram mais crianças, estavam casadas, estabelecidas em cidades distantes. E desde que os filhos partiram, a vida de Adelaide tornou-se uma noite sem fim. Sem cores, apenas dores...
Havia muito tempo que Agripino não conseguia mais dirigir, extremamente debilitado. E seu velho táxi permanecia na garagem. Desgastado como o dono, e empoeirado. De vez em quando, Agripino girava a chave dando-lhe partida, e apertava o acelerador por várias vezes para desobstruir as velas, como ele alegava.
Mas, depois que o combustível acabou, nem isso ele fez mais.
Foram meses de lenta agonia. Agripino sofreu feito um condenado. E Adelaide também.
Os cuidados que ele exigia eram penosos, e mesmo assim, cansada, sofrida, ela os dispensou incessantemente. Generosamente. Noites e noites a fio, ali, plantada ao lado da cama, ao lado de Agripino, apenas cuidando. Com cumplicidade, comprometida.
E ele se foi. E Adelaide não chorou.
Apenas ela ficou ali.
Primeiro, vendeu o táxi. Doou todas as mesas e cadeiras das salas de jogos para o salão paroquial.
Que alívio quando o caminhão as levou dali!
Adelaide entrou na sala vazia. Suspirou profundamente, correu até as janelas e as abriu. Descerrou todas as cortinas, deixou que a luz invadisse a sala e que a leve brisa soprasse o seu rosto. E percebeu, de repente, que as cores continuavam ali. A noite que parecia ter-se abatido sobre a sua vida não apagara as cores, fora só uma ausência de luz.
Dentro do peito uma chama insistia em reacender-se. A chama da vida, a chama do recomeço. Compreendeu que as dores haviam cessado, e que as cores sempre estiveram ali, esperando que a luz voltasse.
Adelaide ligou o som, ergueu o volume, fechou os olhos, dobrou o braço esquerdo sobre a cintura como se a enlaçasse, o braço direito erguido no ar como se estivesse segurando a mão de um parceiro na dança, e dançou... Com passos largos e ritmados percorria toda a extensão das duas salas. E ria... Feliz, como se a vida lhe abrisse os braços. Sentia a liberdade, a mesma liberdade que a fizera tão completa nos seus doces anos de juventude.
E dançou até se cansar.
Pensou em reformar a casa, mas mudou de ideia. Tudo ali, agora, trazia-lhe recordações tristes, e ela não queria mais nada com a tristeza.
Vendeu a casa, e comprou outra. Menor, recém-construída, confortável, prática. A casa com que sempre sonhara.
Comprou novas roupas, novos sapatos, pintou os cabelos. E ficou bonita. Se não tinha a mesma beleza do passado, com certeza tinha agora o mesmo entusiasmo pela vida.
E voltou a ser sonhadora, a fazer planos, apenas querendo ser feliz.
Em uma noite, num certo baile, Adelaide conheceu Cláudio. O “seu” Cláudio, como ela costumeiramente dizia. Rapaz charmoso, elegante, bonito, que estava de passagem pela vila. Jovem galanteador, bom dançarino, gentil, no esplendor dos seus vinte e seis anos.
Então, Adelaide apaixonou-se perdidamente...
E abriu a sua casa para ele. E a sua vida, também.
Cláudio a tratava como se fosse uma deusa. Vinha para a vila em todos os finais de semana. Na segunda-feira partia, ausentava-se durante toda a semana, e no sábado, infalivelmente e para a felicidade de Adelaide, estava ali.
E vinha sempre carregado de presentes.
Assim, Adelaide era feliz. Infinitamente feliz.
Não se importava com os comentários que corriam pela vila. Adelaide não queria saber onde Cláudio ficava durante a semana, o que fazia... Não lhe incomodava o fato de Cláudio ser muito mais novo do que os seus filhos. Nada disso lhe interessava. Apenas ficava feliz em tê-lo ali, com ela, nos finais de semana.
E foram anos e anos dessa convivência prazerosa. Adelaide sempre muito feliz. Nem se lembrava da última vez em que havia chorado na vida.
Na vila, era um burburinho só. Cada um criava uma história para a vida de Cláudio. Uns diziam que era casado, que tinha outra família, que era pai de muitos filhos, que era um usurpador, um aproveitador, enfim, nenhuma virtude lhe era atribuída.
Adelaide ignorava. Era feliz, e isso lhe bastava.
Passava os dias da semana a preparar a casa, os docinhos, os quitutes que o “seu” Cláudio mais apreciava. E, sonhadora, esperava, como nos seus dezoito anos, a chegada do seu príncipe aos sábados, aquele que lhe cobria de amor e de presentes.
Anos e anos de sábados e domingos de puro encanto, de felicidade, de cuidados, como nunca experimentara antes.
E numa segunda-feira, Cláudio partiu. E Adelaide não abriu as portas da sua casa.
Feliz, ela havia fechado as portas da sua vida.
E na vila, ninguém nunca mais ouviu falar de Cláudio.


Regina Ruth Rincon Caires


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