O RENASCER DA MULHER DO AGRIPINO
Adelaide era de uma
beleza angelical!
Jovem, de pele muito
clara, tinha profusas madeixas douradas, levemente encaracoladas, que emolduravam
um rosto perfeito. De olhos azuis que pareciam duas contas de água-marinha, lábios
rosados sempre trazendo um sorriso. Era o retrato da alegria. Moça bem criada, serena,
virtuosa, e sonhadora. Educada com muito amor.
Filha única, temporã de
um casamento cheio de amor. E, como dizia seu velho pai, Adelaide era a
criatura que viera ao mundo para colocar-lhe sentido na vida.
Nos seus esfuziantes dezoito
anos, inocente, sonhadora, enamorou-se de Agripino.
Vindo de outras bandas,
Agripino era um homem bem vivido, conhecedor do mundo, e já contava com seus
quarenta e poucos anos. Dono do único táxi da vila, cortejador, boa prosa, não
demorou muito a cativar o coração da doce Adelaide.
E, depois de algum tempo,
apesar de muito choro, de muitas preces, de muitas rezas, de muitos terços, de
muitas novenas em família, ignorando todas as súplicas do velho pai; enfim, contra a vontade de todos, Adelaide acabou se juntando a Agripino.
De início foram viver na
pequena casa de três cômodos que Agripino alugava desde que chegara à vila.
Tudo muito simples, sem qualquer conforto.
Agripino passava o dia
todo fora. Quando não estava fazendo o transporte de passageiro para outros
lugares, ficava parado no ponto, no largo da igreja matriz.
Nas primeiras semanas,
era essa a rotina. E Adelaide estava feliz. Preenchia seus dias com as tarefas
da casa, no preparo das refeições, e esperava ansiosamente pelo entardecer,
pelo retorno do seu Agripino.
Algum tempo depois,
Agripino passou a não chegar ao entardecer. Passou a voltar para casa na
madrugada. Sempre desalinhado, cheirando a suor, cigarro e bebida. E sempre com
muito dinheiro. Notas e notas de dinheiro que eram guardadas na velha mala,
debaixo da cama.
Não adiantava pedir
qualquer explicação. Agripino, agora um homem de pouca prosa, afirmava que nada
tinha para dizer.
Adelaide apenas
observava. Aquela solidão e a falta de coragem de contar ao pai sobre a sua
aflição, sobre seu descontentamento, iam consumindo a sua alegria. E, não vendo saída, resignou-se.
Em pouco tempo, Agripino
comprou uma casa. Grande, bonita, a mais vistosa da vila. Toda murada, com uma
grande garagem, e um quintal enorme.
Agripino mobiliou toda a
casa. Móveis de primeira, tudo o que havia de melhor qualidade no mercado.
Na casa havia duas salas
contíguas, imensas. E nelas, Agripino
colocou várias mesas de madeira com cadeiras em toda a volta. E só então,
explicou a Adelaide que ali seria um espaço para jogos.
Ficou claro que era isso
que Agripino fazia todas as noites. Jogava cartas...
Adelaide ficou sabendo,
depois de algum tempo, que antes a jogatina acontecia num salão que ficava nos
fundos de uma oficina desativada, salão alugado por Agripino.
Agora, com a nova casa, o local do jogo seria ali. E foi...
Bastava o sol baixar por
completo, os homens iam chegando, acomodavam-se nas mesas, e a jogatina estava
instalada.
Adelaide ficava com a
obrigação de coar e servir café, servir bebidas de toda sorte, preparar e
servir petiscos, limpar os cinzeiros, cuidar do banheiro. E isso tudo começava
ao entardecer e seguia até altas horas da madrugada.
E em tudo corria
dinheiro.
A cada dia aquele
ambiente tornava-se mais insuportável para Adelaide. Era uma casa que não era a
sua casa. Por mais que limpasse, tudo cheirava à bebida. Parecia que tudo
estava sempre enevoado com a fumaça dos cigarros, o cheiro dos cinzeiros
impregnava-se nas cortinas, na madeira. E à noite, somavam-se o vozerio
infindável daqueles homens, as repetidas gargalhadas, o palavreado que nada
tinha com os seus modos, com a sua realidade até ali.
E Adelaide suportava.
Aos poucos, foi perdendo
o viço. Não conseguia compreender o que fizera com os seus sonhos. Como não
enxergara a outra face do seu Agripino. Agora sabia que ele não havia mudado,
ele já era assim quando se conheceram. Apenas ela não havia percebido.
Nesta vida desregrada e
triste, Adelaide teve seu primeiro filho. E o segundo. E viraram a razão da sua
vida. Eram suas pérolas naquele mundo entediante. Passava os dias acarinhando
seus pequenos, tirava dali a gana para a vida, e seguia adiante.
Desertara de muitos
sonhos, mas precisava caminhar. A vida continuava célere, não havia outro
remédio.
Durante o dia as crianças
corriam pela casa toda, pelo enorme quintal sombreado por pés de jabuticaba,
manga, laranja, e uma enorme parreira de maracujá. Mas, à noitinha, Adelaide os
recolhia no seu quarto, e ali ficavam até adormecerem, e até que os últimos
jogadores se fossem. Só então os colocava em suas camas.
E foram anos e anos
iguais. Sempre na mesma lida. Ela era apenas a mulher do Seu Agripino.
Confinada a servir os fregueses da jogatina.
Não demorou muito e
Adelaide perdeu os pais. Primeiro a mãe. O coraçãozinho já fraco deixou de
bater. Depois o pai, entristecido e solitário, partiu.
Adelaide agradecia todos
os dias por Deus ter-lhe dado os dois filhos. Não ficara só...
Na vila todos sabiam do
triste confinamento, mas nunca se ouviu um comentário. Era um silêncio velado.
Se algum comentário foi feito, ele nunca saiu das quatro paredes.
As crianças foram
crescendo, estudando, tomando rumo.
E a casa, com o tempo,
foi se deteriorando. As paredes há muito haviam perdido a cor, o piso se
desgastara, o banheiro encardido ficara com aspecto de abandono.
E, na mesma proporção, Adelaide
foi envelhecendo.
E Seu Agripino também. O
cigarro em excesso mais a bebida foram minando as suas forças. A tosse horrorosa
que castigava durante toda a noite e não o deixava dormir intensificou-se de
tal maneira que já não podia comer ou beber. O coitado apenas tossia.
Então, encerrou-se a
jogatina.
As crianças, que já não
eram mais crianças, estavam casadas, estabelecidas em cidades distantes. E desde que os filhos partiram, a vida de Adelaide
tornou-se uma noite sem fim. Sem cores, apenas dores...
Havia muito tempo que
Agripino não conseguia mais dirigir, extremamente debilitado. E seu velho táxi
permanecia na garagem. Desgastado como o dono, e empoeirado. De vez em quando, Agripino girava a chave dando-lhe partida, e
apertava o acelerador por várias vezes para desobstruir as velas, como ele alegava.
Mas, depois que o
combustível acabou, nem isso ele fez mais.
Foram meses de lenta
agonia. Agripino sofreu feito um condenado. E Adelaide também.
Os cuidados que ele exigia
eram penosos, e mesmo assim, cansada, sofrida, ela os dispensou
incessantemente. Generosamente. Noites e noites a fio, ali, plantada ao lado da
cama, ao lado de Agripino, apenas cuidando. Com cumplicidade, comprometida.
E ele se foi. E Adelaide
não chorou.
Apenas ela ficou ali.
Primeiro, vendeu o táxi.
Doou todas as mesas e cadeiras das salas de jogos para o salão paroquial.
Que alívio quando o
caminhão as levou dali!
Adelaide entrou na sala
vazia. Suspirou profundamente, correu até as janelas e as abriu. Descerrou
todas as cortinas, deixou que a luz invadisse a sala e que a leve brisa
soprasse o seu rosto. E percebeu, de repente, que as cores continuavam ali. A
noite que parecia ter-se abatido sobre a sua vida não apagara as cores, fora só
uma ausência de luz.
Dentro do peito uma chama
insistia em reacender-se. A chama da vida, a chama do recomeço. Compreendeu que
as dores haviam cessado, e que as cores sempre estiveram ali, esperando que a
luz voltasse.
Adelaide ligou o som, ergueu
o volume, fechou os olhos, dobrou o braço esquerdo sobre a cintura como se a
enlaçasse, o braço direito erguido no ar como se estivesse segurando a mão de
um parceiro na dança, e dançou... Com passos largos e ritmados percorria toda a
extensão das duas salas. E ria... Feliz, como se a vida lhe abrisse os braços.
Sentia a liberdade, a mesma liberdade que a fizera tão completa nos seus doces
anos de juventude.
E dançou até se cansar.
Pensou em reformar a
casa, mas mudou de ideia. Tudo ali, agora, trazia-lhe recordações tristes, e
ela não queria mais nada com a tristeza.
Vendeu a casa, e comprou
outra. Menor, recém-construída, confortável, prática. A casa com que sempre
sonhara.
Comprou novas roupas,
novos sapatos, pintou os cabelos. E ficou bonita. Se não tinha a mesma beleza do
passado, com certeza tinha agora o mesmo entusiasmo pela vida.
E voltou a ser sonhadora,
a fazer planos, apenas querendo ser feliz.
Em uma noite, num certo
baile, Adelaide conheceu Cláudio. O “seu” Cláudio, como ela costumeiramente
dizia. Rapaz charmoso, elegante, bonito, que estava de passagem pela vila. Jovem
galanteador, bom dançarino, gentil, no esplendor dos seus vinte e seis anos.
Então, Adelaide
apaixonou-se perdidamente...
E abriu a sua casa para
ele. E a sua vida, também.
Cláudio a tratava como se
fosse uma deusa. Vinha para a vila em todos os finais de semana. Na
segunda-feira partia, ausentava-se durante toda a semana, e no sábado,
infalivelmente e para a felicidade de Adelaide, estava ali.
E vinha sempre carregado
de presentes.
Assim, Adelaide era
feliz. Infinitamente feliz.
Não se importava com os
comentários que corriam pela vila. Adelaide não queria saber onde Cláudio
ficava durante a semana, o que fazia... Não lhe incomodava o fato de Cláudio
ser muito mais novo do que os seus filhos. Nada disso lhe interessava. Apenas
ficava feliz em tê-lo ali, com ela, nos finais de semana.
E foram anos e anos dessa
convivência prazerosa. Adelaide sempre muito feliz. Nem se lembrava da última
vez em que havia chorado na vida.
Na vila, era um
burburinho só. Cada um criava uma história para a vida de Cláudio. Uns diziam
que era casado, que tinha outra família, que era pai de muitos filhos, que era
um usurpador, um aproveitador, enfim, nenhuma virtude lhe era atribuída.
Adelaide ignorava. Era
feliz, e isso lhe bastava.
Passava os dias da semana
a preparar a casa, os docinhos, os quitutes que o “seu” Cláudio mais apreciava.
E, sonhadora, esperava, como nos seus dezoito anos,
a chegada do seu príncipe aos sábados, aquele que lhe cobria de amor e de presentes.
Anos e anos de sábados e
domingos de puro encanto, de felicidade, de cuidados, como nunca experimentara
antes.
E numa segunda-feira,
Cláudio partiu. E Adelaide não abriu as portas da sua casa.
Feliz, ela havia fechado
as portas da sua vida.
E na vila, ninguém nunca
mais ouviu falar de Cláudio.
Regina Ruth Rincon Caires
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