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domingo, 22 de dezembro de 2019

SAGA




SAGA


Como podia encerrar, em tão pequeno corpo, tamanha força, ternura?! Impetuosa sem ser brusca, só gestos de benquerença, um puro oferecer. Sem lamento, não se via, não cobrava nada da vida. Do azul dos olhos, jorrava mansidão que cessava qualquer desalento. Era minha avó. Não sei se a vida era mais leve, ou se há benevolência no olhar que tenho hoje e que vagueia entre a ingenuidade da criança, que fui, e a realidade da velhice que experimento. Não sei. Mas era puro encanto. Em tudo era dito “eu te amo” sem emitir palavra.
Nada era urgente, havia tempo para tudo, sem atropelo. O fazer era sem trégua, diário. Não havia expediente de cinco dias, não havia descanso semanal remunerado. Trabalho era lazer, entrelaçado e combinado. Sustança da vida.
Entre todas as netas, eu era a única que ficava grudada a ela. Marcação cerrada. Tentava adivinhar a direção dos seus passos para não ser um estorvo no caminho. Se bem que não adiantava. Vivia dando de cara com a imensa saia rodada e seus inúmeros saiotes. Minha avó era ágil, ligeira. Acompanhá-la, pari passu, com meus curtos cambitos, somente aos trotes.
Com o tempo, fui ficando conversadeira. Um teste de paciência que, para muitos, seria insuperável. Não para ela. Explicava tudo, generosa. Falava tão rápido como agia, e não foram poucas as vezes em que eu tentava decifrar palavras amontoadas no seu puro castelhano. E ensinava. E me fascinava.
A receita do arroz na panela de ferro besuntada, por fora, com sabão de cinza, a lenha em chamas, o arroz lavado tantas vezes até que a água resultasse translúcida. As medidas da banha de porco, do sal, tudo na ponta da escumadeira. Alho e cebola dosados na concha da mão. E a água, fervendo, entornada da pesada chaleira. Pura magia. Os dias eram cheios, sem pressa. Tudo orquestrado na mais sublime sinfonia, envolvente. Talvez, só para mim. Não sei.
Bonito quando penteava os cabelos. Lá no terreiro, balançava-os ao sol. Longos, brancos, reluzentes. Trazia as mechas para um dos ombros e começava a trançá-las. E o trançado virava um coque na altura da nuca. Depois, o costumeiro lenço preto de bolinhas brancas cobria-lhe a cabeça. Com o passar dos anos, as mechas foram raleando. Não havia mais trança.
E o dia da costura ocupava tardes inteiras. Roupas a serem cerzidas, a serem feitas. Uma dança de agulhas, de linhas, de panos. Puro deleite. Eu ficava nos trapinhos, inventando roupinhas. Era o único momento em que ouvia minha avó cantar. Baixinho, quase sussurrado.
Hoje, revivo o mesmo encanto. Aqui, esparramada no chão, observo minha neta a vestir e desvestir bonecas, percebo que ela experimenta o mesmo fascínio. Semblante tranquilo, alma cheia de sonhos, olhos serenos. Tudo se repete. Não há reinvento na doçura da criança. É natural, inerente. A única diferença é a liberdade de poder traduzir o amor em palavras, sem qualquer barreira. Sublime, além do sentir, é ter a graça de ouvir: “eu te amo, vovó”. É a glória, a certeza de que a vida sempre vale a pena.


                                                                 Regina Ruth Rincon Caires



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