SAGA
Como podia encerrar, em tão
pequeno corpo, tamanha força, ternura?! Impetuosa sem ser brusca, só gestos de
benquerença, um puro oferecer. Sem lamento, não se via, não cobrava nada da
vida. Do azul dos olhos, jorrava mansidão que cessava qualquer desalento. Era
minha avó. Não sei se a vida era mais leve, ou se há benevolência no olhar que
tenho hoje e que vagueia entre a ingenuidade da criança, que fui, e a realidade
da velhice que experimento. Não sei. Mas era puro encanto. Em tudo era dito “eu
te amo” sem emitir palavra.
Nada era urgente, havia
tempo para tudo, sem atropelo. O fazer era sem trégua, diário. Não havia expediente
de cinco dias, não havia descanso semanal remunerado. Trabalho era lazer, entrelaçado
e combinado. Sustança da vida.
Entre todas as netas, eu era
a única que ficava grudada a ela. Marcação cerrada. Tentava adivinhar a direção
dos seus passos para não ser um estorvo no caminho. Se bem que não adiantava. Vivia
dando de cara com a imensa saia rodada e seus inúmeros saiotes. Minha avó era
ágil, ligeira. Acompanhá-la, pari passu, com meus curtos cambitos, somente aos
trotes.
Com o tempo, fui ficando
conversadeira. Um teste de paciência que, para muitos, seria insuperável. Não
para ela. Explicava tudo, generosa. Falava tão rápido como agia, e não foram
poucas as vezes em que eu tentava decifrar palavras amontoadas no seu puro
castelhano. E ensinava. E me fascinava.
A receita do arroz na panela
de ferro besuntada, por fora, com sabão de cinza, a lenha em chamas, o arroz
lavado tantas vezes até que a água resultasse translúcida. As medidas da banha
de porco, do sal, tudo na ponta da escumadeira. Alho e cebola dosados na concha
da mão. E a água, fervendo, entornada da pesada chaleira. Pura magia. Os dias
eram cheios, sem pressa. Tudo orquestrado na mais sublime sinfonia, envolvente.
Talvez, só para mim. Não sei.
Bonito quando penteava os
cabelos. Lá no terreiro, balançava-os ao sol. Longos, brancos, reluzentes.
Trazia as mechas para um dos ombros e começava a trançá-las. E o trançado
virava um coque na altura da nuca. Depois, o costumeiro lenço preto de bolinhas
brancas cobria-lhe a cabeça. Com o passar dos anos, as mechas foram raleando.
Não havia mais trança.
E o dia da costura ocupava tardes
inteiras. Roupas a serem cerzidas, a serem feitas. Uma dança de agulhas, de
linhas, de panos. Puro deleite. Eu ficava nos trapinhos, inventando roupinhas. Era
o único momento em que ouvia minha avó cantar. Baixinho, quase sussurrado.
Hoje, revivo o mesmo
encanto. Aqui, esparramada no chão, observo minha neta a vestir e desvestir
bonecas, percebo que ela experimenta o mesmo fascínio. Semblante tranquilo,
alma cheia de sonhos, olhos serenos. Tudo se repete. Não há reinvento na doçura
da criança. É natural, inerente. A única diferença é a liberdade de poder
traduzir o amor em palavras, sem qualquer barreira. Sublime, além do sentir, é ter
a graça de ouvir: “eu te amo, vovó”. É a glória, a certeza de que a vida sempre
vale a pena.
Regina Ruth Rincon Caires
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