Começo
de tarde massacrante, calor extremo, desalentador...
Coração amarrado na saudade
do meu canto, saudade da casa de minha avó, saudade do sítio de onde nunca imaginei
sair.
Deixo a escola, como de
costume, e planos ardilosos correm pela minha cabeça. Hoje, nada nem ninguém
conseguirá me impedir. Daqui a pouco boto o pé na estrada e, em menos de duas
horas, chego ao meu reduto. Passo a noite lá, bem juntinho de minha avó. Amanhã
bem cedo volto com o caminhão do leiteiro, e não perco a hora da escola.
Devoro a comida numa
rapidez assustadora. Aproveito que minha mãe conversa com a vizinha na cerca do
fundo do quintal, escrevo um bilhete, deixo do lado do prato e, a passos
largos, sigo pela rua principal.
Logo deixo a vila para
trás, e sigo a estrada de terra. Eu caminho quase sempre com os olhos baixos. O
sol é forte, e olhar adiante, visualizar aquela estrada imensa, comprida, feito
uma serpente vermelha com cauda fina lá em cima, junto à linha do horizonte,
desperta um desânimo que deixa as pernas lerdas, pesadas, e faz com que as
tiras do chinelo incomodem ainda mais os dedos.
Pela altura do sol, acho
que ainda não são duas horas. Sorrio... Que sensação deliciosa caminhar por
esta estrada! É tudo tão familiar, tão cheio de histórias, tão povoado de
sonhos! Quantas vezes eu passei por aqui... Mas, só, é a primeira vez. E,
talvez por isso, tem o sabor de aventura.
A figueira grande aponta na
primeira curva da estrada. Imensa, majestosa, imponente, secular. A sombra de
sua vasta copa é um convite ao repouso, e é nisso que penso agora. Ela é um
referencial da estrada. Não há vivente por estas bandas que não a conheça, e
que não tenha desfrutado da sua sombra.
Aperto o passo pensando no
conforto de sua sombra, e à medida que me aproximo, percebo alguém encostado ao
seu tronco. Quem será?
Diminuo a marcha... Um
arrepio me percorre a espinha. Acho que chego mesmo a parar no meio da estrada.
Fixo os olhos, e o sol forte faz com que, instintivamente, eu coloque as mãos
sobre a testa.
É ele... Por que não pensei
nisso antes?! Tantas vezes ouvi falar que ele andava por esta estrada, e não
fiz conta! Agora, ele ali, parado, encostado no tronco da figueira, braço cruzado
sobre o peito, o queixo apoiado numa das mãos...
O louco do Faustino!
Minhas pernas tremem, o meu
corpo todo treme. Se ao menos tivesse uma roça na beira da estrada, eu me
enveredaria por ela até despistá-lo! Mas, que nada... É pastagem dos dois lados!
Penso em dar meia-volta e
sair numa carreira desenfreada. Mas, como?! Estou petrificada, com os pés
colados no chão quente da estrada. Não sei se as pernas estão pesadas demais a
ponto de não conseguir movê-las, ou se estão leves demais a ponto de não
conseguir coordená-las. O que eu sei é que estou paralisada.
Ele fica me olhando
demoradamente, impassível, imóvel. Tão alheio que chego a pensar que, se
continuasse a caminhada, eu passaria por ele pacificamente. Esse pensamento
enche-me de coragem de tal maneira que quase mudo o passo adiante. A voz de
comando já havia partido do meu cérebro quando, de repente, ele, numa
cambalhota circense, se coloca no meio da estrada. O susto foi tamanho que por
pouco não caio sentada.
Minha cabeça gira,
pensamentos não se encontram, nem consigo raciocinar! Fico tentando imaginar o
que o louco estará maquinando.
Seu rosto é estranho.
Maxilar saliente, pele amarelada, ossos proeminentes nas faces carentes de carnes,
olhos fundos e com brilho assustador. Seus olhos têm a tristeza dos velhos e o
tremular ofuscante de expectativa das crianças. Paradoxal, mas verdadeiro.
Abre um sorriso largo, o
que o deixa ainda mais débil e assombroso. Dentes ele não tem, apenas alguns
cacos teimosos grudados às gengivas murchas. O clima é tão apavorante que, além
do desconforto, vejo-me encurralada, sem saída. Se tentar correr ficarei em
desvantagem, afinal a cabriola que acabei de presenciar, demonstra bem a
agilidade que ele tem com as pernas.
Se pelo menos passasse
alguém por aqui! Nem me atrevo a olhar para trás, meus olhos estão presos à
figura do meio da estrada.
Uns dez metros nos separam.
Dez metros que, pela nitidez com que enxergo os traços do seu rosto, mais
parecem dez centímetros. E o louco continua no meio da estrada...
Agora seu sorriso se
aplaca. Fica sério. Os olhos ganham ar enigmático. Não sei bem se enigmático ou
ausente. Tudo é tão apavorante que nem posso compreender.
De repente, ecoa um som
estranho que parece um grunhido, e ele irrompe em gargalhadas. Gargalhadas
horríveis, guturais, forçadas. Se não forçadas, pelo menos sem razão aparente,
sem justificativa. Gargalha tanto, e tão incontrolavelmente, que chega a
semicerrar os olhos, entortando o corpo todo, num esforço desumano.
Meus pelos estão eriçados.
E, como tudo tão estranho que ele faz, num repente, silencia. Passa as mãos
pelos cabelos, como se só agora percebesse a quentura do sol, e volta a me
encarar. Meus olhos não perdem um movimento. Vigiam cada contração do rosto
daquela estranha criatura. Meus olhos, assim como todo o meu corpo, temem e
sofrem diante da expectativa daquele “o que virá agora?!”.
Por que ele é assim?! Será
que se chama Faustino, ou esse é o nome do seu pai? Será que ainda tem pai? Tem
mãe? Por que tanto desmazelo com seu corpo?
Todas essas indagações
brotam involuntariamente na minha cabeça. Para que me preocupar com isso? O que
interessa se ele tem pai ou não? Ainda mais agora, nesta situação?
O sol deve estar incomodando
porque ele passa as mãos repetidas vezes pelos cabelos ensebados indo até à
nuca, deixando de fora os cotovelos erguidos, ossudos, que escapam pelas mangas
rotas da velha camisa. É extremamente magro. Cadavérico, mesmo!
Meu susto não poderia ser maior
quando o vejo mover os pés. Lentamente, arrastando com os dedos a areia solta
da estrada, vem em minha direção. Ele se aproxima, seu rosto fica cada vez
maior. Sinto vertigens, mas continuo ali, estática, nem mesmo os braços eu consigo
mover! Para dizer a verdade, nem os olhos consigo piscar! Seu rosto está muito
próximo. Posso sentir sua respiração ofegante, seu hálito de rapé, o cheiro
azedo do seu corpo.
Para diante de mim.
Olha-me, curioso. Sinto-me como um bicho no zoológico, como uma cobaia na mesa
de cirurgia. Ele olha demoradamente meus cabelos, meus olhos, meu nariz, meu
pescoço. Olha como se estudasse alguma coisa. Depois, vira o corpo e anda em
redor de mim. Não posso vê-lo, mas sinto que ele está próximo, muito próximo.
Seus pés jogam areia nos meus calcanhares.
Volta à posição de frente,
e olha profundamente nos meus olhos. Ergue o braço e passa a mão, suavemente,
pelo meu rosto. Contraio-me toda, não sei se de medo, de nojo, ou de aflição. É
horrível!
Seus olhos são agora
incrivelmente límpidos, serenos, mansos. Neste momento não transparecem a
loucura que toma conta da criatura. Desce o braço lentamente, e junto com ele
as pálpebras, olhando fixamente o chão.
Gira o corpo sobre o
calcanhar e segue, lentamente, rumo à figueira. Vendo-o agora, com o andar
arrastado, ombros caídos como se levasse o mundo nas costas, chego a sentir
pena.
Senta-se no barranco, junto
ao tronco da velha figueira. Coloca os cotovelos sobre os joelhos, prende a
cabeça entre as mãos, e cai num choro convulsivo.
Posso ouvir os soluços como
se ao seu lado estivesse. É um choro sentido, profundo, lúcido, e, pelo que
consigo perceber, voluntário. Sente vontade de chorar, e chora...
Sinto ímpeto de consolá-lo,
mas o pavor vivido naqueles poucos minutos é mais forte e me faz retroceder.
Melhor mesmo é imitá-lo.
Giro, então, o corpo sobre
os calcanhares, mas não ando. Desato a correr. Corro como se as pernas fossem
asas, e só paro quando vejo que estou na entrada da vila.
Aonde eu ia mesmo?!
Não sei... E não importa...
Agora, só quero ir pra
casa...
Menção Honrosa - Concurso Nacional de Contos de Ponta Grossa - PR - 2014
Oi...
ResponderExcluir